Dienstag, März 04, 2003

REALIDADES CRUÉIS

Escuto palmas no portão. Vou ver quem bate as três da tarde de um feriado. Um garotinho. Cinco anos, no máximo. A camiseta e o calção deviam ter mais, porém. A voz era muito fraquinha.

- Tio, tem um serviço?

- O quê?

- Um serviço. Pra eu fazer.

- Tu quer um serviço? - Incrédulo, fascinado.

- Sim. Pra comprá leite pro nenê.

Eu não sabia, realmente, o que dizer. Era tocante ver aquilo, menor que minha cintura, me pedindo um emprego. Um serviço. Mas, no entanto, usei meu lado racional pra analisar essa história. Um serviço... Roçar pátio é um. Por que o pai dele não roça pátios? O meu tá com um matagal do caramba, ele podia resolver, pensei. E logo pensei num motivo simples pra recusar dar um para ele. Seria desumano se eu desse. Qualquer um pensaria isso. Inclusive o pai dele.

- Amiguinho, desculpe, eu não tenho um serviço.

- Mas é pa eu compra um arrois e um feijão.

Foi uma das coisas mais cortantes que alguém me disse. Era crueldade tudo aquilo. Ver aqueles olhos completamente mortos me encarando como mais um dos que negavam. Ter que ouvir aquelas palavras chicoteando meu senso humanitário. Pensar que não adiantaria nada. Como é que a situação pode chegar a esse ponto? Era mais cruel ainda tomar aquela decisão. Mas eu seria firme. Eu não daria nada para ele. Talvez assim seus pais desistissem.

- Não, não tenho. Desculpe.

- Então só um arrois, um feijão. É pra criança.

Infeliz a mente de quem bolou isso. A pessoa que aconselhou esse garoto a fazer isso só pode ser um monstro. Sem alma. Podre. Rastejante. Quase tanto quanto eu, que estou negando isso. Mas é melhor para ele. Será mesmo?

- Não, garoto. Não tenho nada mesmo.

- Mas...

- Não tenho, desculpe.

Virei as costas e saí. Dói até agora. Merda de país que não cuida dos seus. Merda de sociólogos que discutem uma situação irracional. Merda de políticos que votam um aumento de 59% nos seus salários enquanto essa migalha humana mendiga com astúcia cruel. Merda de condição essa que não me deixa escolha nenhuma, senão negar um paliativo e torcer para que tudo se resolva. Maldita é a impotência. Malditos os escrúpulos e toda a falta deles. Maldita a minha existência, meus pensamentos e toda a racionalidade que cultivei. Mas, porra, o que tu faria na minha situação?

Sonntag, März 02, 2003

MARCHINHA

O teu cabelo não nega, mulata...

E eu lá. Sem fantasia decente, sem grana para tal. Nem sabia porque não existia dinheiro lá em casa, mas fazer o que? Sair só com a camiseta de super homem e uma bermuda, oras! Com uma conga. É. Azul. Era esse o meu traje, na primeira matinê de carnaval da minha vida. Tinha uns cabelos claros, finos e escorridos - completamente diferente de hoje. E disposição para ir a um treco desses. E uma mãe com muita vontade de festejar a sua condição de maternidade.

... por que és mulata na cor...

Chegando lá, duzentos e cinquenta e cinco mil pessoas. Pelo menos na minha contagem. Nunca tinha visto tanta gente. Nem nos recreios. Era uma multidão. Todo o povo de Canoas. Eu acho. Muitas crianças, fantasias, papeizinhos circulares multicoloridos que caiam do forro como uma chuva de arco íris. E uns papeizinhos super divertidos de enrolar, como a minha mãe queria que eu acreitasse.

... mas como a cor não nega, mulata...

Muita gente corria, e eu ali. Começou a crescer, em meio aquela multidão, um desejo incontrolável e desconhecido em mim. Pelo manos na minha pequena memória ocupada por apenas seis anos de dados, na época. Meninas, meninos, dancinhas, pega-pega, quase comi confetes. Suor, calor. E musiquinhas de carnaval.

... mulata quero seu amor!

Nesse momento irrompeu. Vômito. Torrencial. E estava, assim, começando meu pânico por carnaval.