Freitag, August 30, 2002

BOLINAÇÃO VIRTUAL

Espera um e-mail, faz um tempão. Precisa ler aquelas palavras. E, por mais idiota que possa parecer, de alguém que ele nunca viu, nem sentiu o cheiro, nem olhou nos olhos, nem tremeu por. Está virtualmente apaixonado por todas as virtudes que afloraram da tela. Emoldurou com uma personalidade aquela pessoa que sempre existiu dentro do seu suboconsciente. Consegue agora sentir que no seu monitor é ela, a pequena Cassandra, que parecia viver só dentro dele que externou em algum ponto setecentos quilômetros longe. E agora aquela barrinha de status do Outlook faz um charme do caramba, como se dissesse "espera sentado, que tua conexão é de 14400..."

Já não conseguia dormir direito pensando em tantas as qualidades repartidas, todas as coisas que fecham e os gostos, tudo. Nunca tinha achado algo dessa maneira. Todas as mensagens pareciam conter coisas escritas nas entrelinhas. Ele mesmo encontrou trezentas e noventa e cinco maneiras de interpretar as letras. Inclusive os estilos de fonte. O coração trepidava enquanto cada palavra era degustada. Sem dúvida, era amor.

Chegou finalmente o e-mail. Nele tinha um número de telefone e uma daquelas carinhas de dois pontos, parênteses e sinal de igual. E junto duas palavrinhas: me liga. Como assim me liga? Naquele momento tudo começou a rodar, a cabeça dele, o computador, o e-mail e até mesmo os ponteiros do relógio. Como ela pode? O lance legal, a virtualidade do relacionamento, as bolinações mentais, tudo harmagedonizado com um mail bomba que queria que as coisas passassem para o analógico.

Doeu muito, mas ele apagou aquele nome da mail list. E suspirou o negro futuro solitário que o esperava.

Donnerstag, August 29, 2002

CAÇA

Eu estava sentado, como de costume, lendo meu livro predileto. Na mesa de sempre. Com meu café irlandês de sempre. Quando de repente, não mais que de repente, surge um vulto no meu campo de visão periférica. Meu sentido olfativo logo disparou o sinal ao meu cérebro: indivíduo do sexo feminino próximo. Ergui minhas pupilas que brincavam nas letras e tive a confirmação. Ela pediu para sentar. Óbvio, não neguei.

Estava bela naquela noite. Não tanto pelo seu rosto, que eu por sinal já conhecia, mas mais pelo olhar. Tinha alguma certeza naqueles meneios auriculares, como uma gueparda veloz mirando um búfalo. Ela sorriu, e aí me dei conta das alusões absurdas por onde deixei minha mente ir. Falou algo como um "e as coisas, como estão?", o que me fez chamar as pupilas - que agora brincavam nas curvas dela - devolta. Sorri meio sem jeito, como se ela pudesse adivinhar o que eu estava fazendo amparado pelo meu silêncio contemplativo.

A partir daquele momento, engatamos uma conversa fluente. Já nos conhecíamos, embora parecesse que nunca tivéssemos nos falado, tamanha curiosidade que ela tinha sobre as minhas coisas. Passamos por zodíaco, festas, vícios, e um monte de outras coisas mais mundanas e sensoriais. Estávamos para engatar em assuntos mais diretamente sensuais quando chegou um amigo meu. Engajou-se também no assunto, me dando suaves "empurrões verbais". Aproveitei a brecha para terminar meu café.

Em cinco minutos, mais onze amigos meus já tinham chegado na mesa, e começavam uma maratona de feitos heróicos. Eu particularmente não sabia conviver com tantos altruístas, tantos puritanos, tanta gente de bem e feliz da vida, com tantas namoradas desatenciosas e acima de tudo, tantos amigos carentes. O que se seguiu foi uma complacência tremenda da nossa anfitriã, que pode começar a sua seleção de pretendentes. Muito fraco, muito bonzão, muito feio... e as atenções se fechavam em torno de uma ou duas pessoas, num afunilamento bastante claro.

Eu ainda estava tomando o meu café, e fazendo um esforço tremendo para que ele não terminasse antes do final do show. Aproveitei o fato de ter sido usado de isca (ou de ter sido eliminado antes da primeira fase) para ficar observando. E começou a sessão dos podres. De uma hora para outra, todos queriam se desmascarar. Parecia um baile do cabide veneziano. "Lembra daquele porre Fulano? Ah, não tem como, tu bebeu tanto que não lembra de nada", "E aquela alemoazinha que tu tava comendo, Cicrano?" e por aí afora.

Ela ria de satisfação. Eles se degladiavam. Ela sentia seu trabalho facilitado. Eles faziam papel de otários. E eu vendo tudo. Com certeza, no outro dia, se reuniriam todos para conversar sobre as técnicas utilizadas na noite anterior, os acertos e erros, e os tratados éticos e técnicos para a próxima caça em conjunto. Tratado búfalo para caça de guepardas. Tudo isso é efeito da seleção natural. Ou somente culpa da primavera.

No final, eu estava certo com a minha alusão. Ela era sim uma gueparda caçando.
CUIDADO, FRÁGIL.

Deformação. Aprendi na escola que os corpos tem limites de deformação. Por exemplo, se submetemos uma placa de aço a uma determinada carga, ela tem a tendência de fletir (entortar), voltando ao seu estado inicial depois de cessada a ação da mesma. Chamamos isso de deformação elástica, por motivos óbvios. Só que, dependendo da força que aplicamos, ela entorta e não volta mais ao seu formato. Obviamente, isso tem influência direta da força, que é maior que a primeira. Nesse caso, venceu-se o limite da deformação elástica, ocorrendo uma deformação plástica, irreversível.

Além da força, temos também a natureza do material como fator importante no comportamento deformatório. Alguns materiais tem um limite de deformação menor que os outros. Como por exemplo, o vidro e o cobre. O primeiro é quebrado facilmente quando submetido ao impacto, o que não ocorre com o último. Isso significa que ao invés de fletir, o vidro quebra quando exposto a uma força. A isso damos o nome de tenacidade, a capacidade de absorver impactos sem rompimento do material. E a capacidade de dobrar quando submetido a uma força é a maleabilidade.

Essa pequena explamação me disse muita coisa. Como por exemplo, como as pessoas se comportam. Principalmente as padronagens humanas gélidas. Fácil analogia. O gelo não é muito tenaz, quebra facilmente quando se choca com algo. Não é maleável, porque não dobra com facilidade. Ou seja, seu limite de deformação plástica é muito pequeno. Então, não faça força, você vai quebrá-la, ou machucá-la. Lembre-se sempre que a água assume a forma que lhe derem.

Aqueça os seres de gelo. Essa é a melhor saída.

Mittwoch, August 28, 2002

DESTINO

Destino. Esse grandecíssimo filho de uma cadela. Ele apronta das dele sempre.

Envolto em mais um dia desses sem nada para fazer, passei mais esse que vivi hoje. Isso até as cinco e trinta da tarde, quando as coisas mudaram. Estava eu correndo pela casa a cata das minhas coisas que nunca estão onde eu queria que estivesse, e conversando com o meu irmão, quando o telefone tocou. Ele atendeu. Era para mim. Uma voz diferente do outro lado. Eu já sabia quem era. Na realidade estava esperando por aquele telefonema desde domingo. Eu tinha uma espécie de necessidade de ouvir aquela voz. Por mais estranho que pareça, como já concordamos anteriormente.

Bem, o fato é que o telefone tocou e ela estava do outro lado da linha. Ou da fibra ótica, afinal estamos bem modernos hoje. E, para grandes distâncias, nada melhor que tecnologia. Ela encurta limites. E eu de tempo curto. Ainda precisava colocar o carro para andar meus trinta quilômetros de congestionamento. Aula de estatística. "Bah, agora infelizmente não dá. Tu me pegou de saída. Se tu puder, liga amanhã, perto das duas. Daí a gente tem mais tempo". Maldito tempo. Mesmo sem eu estar trabalhando, ainda escorre pelos meus dedos quando eu mais preciso. Fui seguir a minha sina.

Aula. Recebi a minha prova. Fui bem. A professora começa a dar uma pequena explanaçãozinha sobre as questões. Só que uma delas eu não engoli. Pedi explicação. Ela se esquivou. Insisti. Ela disse que estava errado. Eu disse que não estava. Ela insistiu. Eu insisti. Ela voltou a encorrer no erro. E eu falei que aquilo era física de primeiro grau, simples e lógica. Ela ficou puta. Quando ela me chamou de "meu anjo" na frente da turma toda, eu fiquei puto. Ela deixou o sangue fugir para a cabeça. Eu já parecia um termômetro invertido. Ela continuou batendo na mesma tecla. Eu desisti. Peguei minhas coisas para ir embora. Minha amiga disse que não valia a pena. A professora disse que eu podia sair, que ela não tava nem aí. Daí eu fiquei mais puto. Quando eu saía pela porta ela ainda resmungou algo que eu não entendi e eu respondi algo que não me lembro. Nisso transcorreram-se cinco minutos.

Com medo de ganhar meia ou uma hora, sei lá eu, em boa e distante companhia, perdi cinco minutos da minha vida com gente ignorante. Aprendi a lição. Liga pra mim a hora que quiser, vou arrumar tempo para todas as coisas que eu achar importante. Nem que tenham esse rótulo apenas por dois ou três dias. Vou ser mais instintivo. Vou ser mais humano. E isso não é uma jura de final de ano.

Nunca mais brigo com Chronos e Fortuna. Lhes peço perdão.

Mittwoch, August 21, 2002

JOYCEANAS

Ele estava ofegante. Mas conseguiu se esgueirar entre os urbanos e sentar em frente ao balcão. Tinha a boca seca e o coração a mil. E não queria mais pensar no assunto. Pediu ao garçon um meio uísque malte. Nunca conseguia tomar um puro quando estava desestabilizado mentalmente. Tirou o chapéu alto que trazia, deixando sobre o banco ao lado. Vestia bela casaca riscada, azul escura, com sapatos pretos verniz. Tomou em suas mãos seu relógio e viu que eram vinte e três para as onze. Logo deveria voltar para casa, e quem sabe terminar o que começara.

As pessoas que entravam e saíam do bar eram barulhentas, e, talvez, nem tinham notado a existência dele. Estava quieto e era dissonante, por isso, no ambiente. Porém, depois da terceira rodada de meios uísques, as coisas tornaram-se melhores. Até teceu coragem de observar as pessoas do lugar. Viu, primeiro, o garçon. Cara redonda com óculos fundos, pele avermelhada. Olhos sujos. E isso o impediu de se deter mais na interpelação visual. Voltou a contemplar o fundo do copo, retirando mais dois xelins para o pagamento da próxima dose.

Duas mesas adiante, seus olhos atingiram uma jovem. Ela estava muito bonita. Usava sua roupa de final de semana, com belas luvas negras, um chapéu e uma echarpe que era amarrada sob seu pescoço. Estava sozinha, parecendo esperar alguém. E trazia ares de tristeza profunda. Num descuido seu, deixou seus olhos se cruzarem e neles pousar. E foi então que ele percebeu que ela tinha olhos de vaca.

Todos conhecem, ou já viram pelo menos, pessoas com cara de vaca. Previlégio não apenas das mulheres, muitos homens tem esse aspecto. Parecem com aquelas maravilhosas holandesas dos comerciais de laticínios que aparecem no final, quando o jingle está quase finalizado, e culminam num mu gracioso, mas impessoal. Uma interjeição perdida, como se as câmeras não estivessem ali, nem mesmo as pessoas ou os saquinhos de leite. Como se nada além do seu doce e inerte campo estivessem atravessando seu campo de visão. Um olhar sem fundo, de puro olhar, sem intenções nem destinos. Algo que nem precisava estar ali, não conta ponto algum, mas está simplesmente por ser fisicamente impossível arrancar os globos oculares e guardar em uma caixinha por um momento. Inúteis, vagos e ao mesmo tempo inocentes. Imprecisos.

Foi interrompido de seus pensamentos por um sorriso bovino. A menina tinha dentes, e belos, retos, brancos. Otimamente emoldurados por uma boca avermelhada e sumarenta. Ela continuava olhando do mesmo jeito, mesmo sendo desmentida por seu órgão falador. E deixou cair no chão o lenço.

Donnerstag, August 08, 2002

THE THIN THING THINKER

I feel a thing
I have a think
it's a thin think
for a few thing

But, however, it's something
and I like to think
a piece of thing
about thin things

The think is a thing
but is anything
maybe a think is something
for me is everything

I think about the thin things
thin think for a thing
a thin part of a think
I think a thing.

And anything for something was everything.

Mittwoch, August 07, 2002

SONHOS E FAZ DE CONTA

O silêncio da tua voz iluminou o ar em lampejos de glória. E todo o sempre se tornou segundo no meu passado repleto e formidável. Os suspiros e os olhares seguiram cálidos e fluídicos, em sentidos descentrados. A maior parte da dor ficou nos olhos de quem não viu e nos sons surdos emanados pelos sinos de cristal gélido que soavam ao fundo. Em segundos o que era mundo converteu-se em plano e o ano caiu em sono profundo. Depois disso nunca mais se ouviu de nós dois, quer neste mundo ou n'outro.
CAMINHO DAS COISAS

Ambíguo,
Eu e meu umbigo
na estrada que sigo.

Singelo,
singe o martelo
que sanciona ao cutelo.

E eu dormindo
ainda é domingo.
Pronde o mundo está indo?
GESTAÇÃO MUTALÍSTICA

Serve ao
Verme da
Derme do
Germe da
Serpe.

Freitag, August 02, 2002

CONTOS DA INFÂNCIA

Lembro agora dos idos tempos da quarta série do primário. Eu estudava em uma escolinha pequena, na minha cidade natal. Tão pequena que não oferecia o ensino completo até a oitava série. Era, portanto, uma escola de primeiro grau incompleto. Lá comia-se arroz com proteína, de soja, que era servido em canecas azuis. Era pavoroso para mim, mas muito bom para as pessoinhas que iam ter que chegar em casa e ainda dividir um almoço mirrado com seis ou sete irmãos. Lá tive minhas primeiras experiências como goleiro de futebol e líder estudantil frustrado. E tive contato com meu primeiro livro, na segunda série, o Confissão do Minotauro.

Mas esses tempos que quero recordar são outros. Época de festividades da revolução farroupilha, a semana de vinte de setembro. Estávamos em gincana. Minha turma era a mais velha da escola, e os "formandos" tinham que fazer uma grande apresentação. A semana inteira de tarefas, os colegas todos empenhados em dar o melhor de si. Trabalhando no intuito de dar a nós mesmos o gosto de uma última vitória antes de sair. Olhando para o mesmo ponto, juntos.

Até que surgiu um imprevisto. A escolha do nome da equipe. Existia uma grave e acirrada disputa em torno de dois nomes. O primeiro, Equipe Lua de Cristal, era defendido por todas as meninas - e um garoto afeminado - da minha sala. Os garotos estavam irredutíveis quanto ao nome Equipe Super Máquina, prontos para a briga. E eu queria Equipe Nico. Mas ninguém me deu ouvidos. Estava sendo regeitado na minha maior oportunidade de liderança da época. E a ditadura se instaurou na resolução do impasse. A professora escolheu três momes mais adultos, com a adoção do nome Equipe Rio-Grandense. Em solidariedade fiz a música da equipe, cantada por mim mesmo e outros dois colegas, na cerimônia de encerramento da gincana. Eu tinha dez anos e escrevi isso:

Nós temos a garra Rio Grandense
que buscamos nas coxilhas e planaltos
e viemos p'ra cidade canoense
para ganhar a glória em grandes saltos

Vamos vir à galope
e vamos botar para quebrar
com tudo o que temos em mente
vamos entrar para ganhar

Esse povo Rio Grandense
tem a garra e o esforço da terra
e mesmo no caminho dos campos
isso é melhor do que a guerra

Vamos vir à galope
e vamos botar para quebrar
com tudo o que temos em mente
vamos entrar para ganhar


A censura ditatorial da minha professora resolveu mudar onde se lê povo por equipe. E eu não gostei da última rima. Mas foi ao ar mesmo assim. Estava inaugurada a minha síndrome de poeta.