COISAS
As coisas estavam acontecendo de maneira muito peculiar. Foi o primeiro pensamento dele assim que abriu os olhos. Ficou mais um tempinho na cama pensando naquela conclusão. Estava muito certa. As coisas andavam meio estranhas. Tirou os cobertores de cima do corpo e sentiu o vento frio da manhã. Olhou para o teto, no três levantou. Tava frio, tinha o que fazer durante o dia. Um banho poderia ser bom naquela hora. Decidiu pela ducha.
Enquanto a água limpava seu corpo do sono, clareava a sua cabeça. E nem foi por causa do
shamppoo. Reportou-se a duas semanas atrás. Estava ele tomando banho, naquela mesma hora, mas com outra postura. Estava indignado por estar fazendo aquilo. Queria ficar entre as cobertas, dormir até o meio dia, ficar vendo desenho. No final do expediente do mesmo dia, recebeu o bilhete azul. Seja lá quem foi o anjo que ouviu as preces dele, foi muito eficiente.
Desligou o chuveiro, pegou a toalha. Secou-se e olhou o espelho. As coisas não pararam por aí. Ele se envolveu com mais um assunto difícil, complexo. Coisas do coração (ou da falta de, o que seria mais correto). Quando tudo estava parecendo ir para as cucuias, alguém se meteu e resolveu o caso. Providencial. Divino. Realmente alguém estava tomando as decisões mais difíceis por ele. E não sabia nem quem era e nem o que desejava com isso.
Já vestido, entrou no carro ainda pensando. O que significaria todas essas coisas? Ele não achava motivos muito claros para levar a vida que vinha levando, reclamão, insensível. Já se sentia livre para as coisas novas. Em paz, como há tempos não sabia ser. Deu partida e ligou o rádio exatamente na hora de
Everlasting Love. Sorriu. Engrenou o carro e saiu.
Alegre rumou para a Avenida Principal. Viela singela que tinha esse nome por ter sido a rua onde o Príncipe do Futebol deu seus primeiros dribles. Preferencial, embora muita gente se esqueça disso. Até mesmo ele caía nesse erro as vezes. E foi com
Cake nos alto falantes que ele entrou nessa lendária travessa. Estava atrasado, tinha que estar na empresa de seleção em dez minutos. Engraçado... Príncipe do Futebol, Seleção... Rrrrrrrrrrrrrríííí....Crash.
Acordou em uma grande sala de espera. Branca. Estava sentado. Vestido de branco. Parecia ser um hospital, mas ele estava inteiro. Parecia muito irreal. Tanto quanto o Corsa branco que veio em grande velocidade se chocar contra a sua janela, há segundos. Ou meses. Não dava para precisar. Foi muito rápido. Mas ele lembrava. Qeria uma revista. Se olhar no espelho. Sabe como é, se aquilo fosse um hospital, sabe-se lá o que tinham feito. Levantou já decidido a ir em busca dessas coisas de primeira necessidade quando abre-se uma porta no final do corredor.
- Jorge Luís!
Ficou estático.
- Jorge Luís!
- Sou eu.
- Por favor venha por aqui.
Seguiu a voz pelo corredor. Branco. Não o corredor, ele. Podia ser que fosse o médico, o responsável, qualquer coisa dessas. Era comprido esse caminho, fresco e ventilado. Parecia agradável e talvez fosse se ele soubesse onde se encontrava. Muitas portas. Numa delas, entre aberta, lia-se "Gabriel", e dentro havia som de cornetas. Adiantando-se viu pela fresta o que seria um ensaio.
- Não, não, não! Isso é para ser uma anunciação, não um baile de debutantes. Quero mais energia nisso. E Muriel, o que você está fazendo com essa guitarra? Os anjos usam cornetas! E faça o favor de tirar esses piercings!
Até seus neurônios ficaram em silêncio. Ainda antes de seus olhos abandonarem a brecha pode notar asas. Achou que só poderia ser um sonho. Seguiu reto pelo corredor. Tinha que perguntar para aquela voz o que estava realmente acontecendo. Parou à porta.
- Entre.
Tinha muita luz lá dentro, mas a curiosidade era maior que o receio. Adiantou-se.
- Com licença.
- Pois não, sente-se.
O interloucutor era um senhor de idade, com barbas longas e cabelos combinando, amarrados em um rabo. Vestia um terno branco, com gravata branca e camisa de mesmo tom. Parecia muito sábio e tinha ar agradável. Foi ele quem falou denovo.
- Jorge Luís, eu sou Pedro.
- São Pedro?
- Sem títulos por favor - entre sorrisos e um gesto vago. Mas sou eu mesmo.
- Isso quer dizer que estou morto?
- Não tecnicamente. Você está em coma, num hospital.
- Não sei o que dizer.
- Não precisa. Aceita água, uma óstia?
- Claro, obrigado.
Alcançou o pratinho com os paezinhos redondos.
- Aqui tem patê.
- Patê?
- Pra dar um gostinho nas óstias.
- Mas isso pode?
- Aqui pode. É de cordeiro, ótima. Experimente.
Um segundo de degustação. Realmente era muito bom.
- Bem, mas por que estou aqui?
- Oh, certo, certo. Você já deve ter percebido que algumas coisas têm acontecido, digamos, estranhamente...
- Estava pensando nisso hoje pela manhã.
- Eu sei.
- Mas como?
- Isso é um outro assunto. Como eu ia dizendo, essas coisas... não foram em vão. Temos um dos nossos com você, dando conselhos e "limpando a sua ficha" - disse isso sinalizando as áspas com a mão.
- Quem?
Pedro mostrou a foto. Ele apenas sorriu. Só podia ser ela. Amigas...
- Prossiga, por favor.
- Pois bem. Estamos fazendo isso por um simples motivo. Nossos concorrentes estão fazendo uma camapnha um tanto quanto desonestas para arrebanhar mais almas.
- Você quer dizer, o Coisa Ruim?
- Ele mesmo. Tem saído por aí prometendo desejos em troca de almas.
- Acho que já ouvi isso.
- Ocorreu com Fausto.
- Provavelmente foi daí...
- Foi. Fizemos com que você escolhesse esse livro na estante.
- Ei, mas quanto aquela história de livre arbítrio?
- As vezes somos forçados a interceder. Mas somente com a aprovação do Supremo.
- Oh...
- Sim. E ele está ciente do que está ocorrendo. Tudo isso foi parte da nossa estratégia.
- E posso saber o que é?
- Claro. Você é o primeiro dos nossos a poder escolher o seu futuro. Nós temos uma base
Standard que pode ser modificada de acordo com os seus gostos. O pacote inclui admissão em universidades, filhos super inteligentes e saudáveis, sucesso financeiro e a esposa que bem entender - se quiser, óbvio. Dinheiro, tudo o que quiser, desde que previsto no nosso código - disse, apontando um livro.
- O que é isso?
- É o que vocês chamam de bíblia, mas de um tamanho útil. Na de vocês tem muita literatura.
- Compreendo.
- Será acompanhado pelos nossos acessores e poderá fazer todas as escolhas que quiser.
- E o que tenho que dar em troca?
- Sua alma para o nosso rebanho. E viver dentro dos nossos princípios.
- Parece bom.
- Ótimo. Assine aqui.
Jorge assina com uma pena.
- Bom, que vida você quer?
- Bem, deixa ver aquela padrão que você citou?
- Claro.
Jorge leu o papel. Parecia bom. Estudar física, fazer três ou quatro descobertas que salvariam milhares de vidas, icluindo a cura do câncer, dois títulos estaduais de futebol como jogador e cinco
best-sellers. Dinheiro suficiente para quantas viagens quisesse e um plano de bonificações para cada boa ação extra. Parecia tudo muito fantástico, mas ele balançou a cabeça no final.
- O que há errado?
- O item casamento. Não estou muito confiante nessa companheira.
- Temos outras - disse, abrindo um catálogo.
Jorge olhou e reconheceu um rosto em especial. Velho conhecido.
- Eu quero uma dessas.
- Só um momento. Vou ver com o nosso estoque - pegando o telefone.
Duas ou três palavras e estavam devolta ao assunto.
- Infelizmente, não podemos - disse, desligando.
- Como assim?
- Esse modelo é especial. Temos apenas uma dessas e não vamos fabricar nada nessa linha. É um modelo muito complicado, arisco demais. Sei que é muito atrativo, mas não temos nada nem mesmo similar.
Jorge balançou a cabeça. Pedro se ergueu, caminhou até o rapaz e afagou seus ombros.
- Sei perfeitamente o que passa pela sua cabeça. Conhecê-la foi algo que não estava nos nossos planos. Ela sempre faz o que quer. Nem mesmo Mefístoles põe regras nela. Mas temos esse modelo aqui, que parece ser muito bom. Faz um
test drive e caso não goste, me ligue - disse, estendendo um cartão.
- Bom, vou tentar. Ok, acho que está na minha hora.
- Certo. Você vai acordar e começar a viver novamente a sua vida. Espero que goste.
- Eu também.
Despedem-se com um aperto de mão. E foi assim que começou a nova vida do nosso herói. Ia viver a vida que Deus lhe deu. Literalmente.