GATOS E O PROVÉRBIO POPULAR
Acordou. Olhou ao redor. Estava sozinho. Dormiu ali na sala, no conforto do sofá desde aquela manhã, quando Maria o deixou. Sentia-se muito cansado. Mas isso era normal. Acontecia sempre que ele voltava do hospital. E como suas visitas tinham se tornado freqüentes - até mesmo bimestrais, podia-se dizer - nada daquilo significava mais que simples rotina. E isso ele detestava. Com todas as suas sete vidas.
Lambeu a pata direita com sua língua felpuda. Era muito asseado. Gostava de parecer belo. Principalmente para ele mesmo. Aliás, não existia nada mais importante que a manutenção do seu esguio corpo cinza de bigodes negors. Era simplesmente incomum. Não existiam muitos iguais a ele. Garantia o apreço quase imediato de quaisquer fêmea, desde porcas até gatas - em ambos os sentidos. Por isso estava lá. Maria ficou apaixonada por ele. Ainda mais pelo seu jeito quase canino de pedir carinho, exibindo a sua barriga branca, que lhe conferia o batismo: Thomas. E talvez venham daí as suas tendências psicóticas.
Se existisse um Freud felino, fatalmente analisaria como síndrome da falta de ratos. Mesmo com todos esses mimos ele era infeliz. Sexo uma vez por semana - cruzas choviam no apartamento. Comida farta. Muito carinho de todos os lados. Talvez pela quantidade dessas boas coisas ele não via muita importânica nisso tudo. E começou a agir de maneira estranha, há quase um ano. Maria põe a culpa naquela siamesa. Só que Thomas sabia que não era ela. Isso tudo era resultado das influências do destino. Queria virar lixo, ir às ruas. Provar que era viril numa briga, arrancar tufos, se livrar dos medos. Colocar-se sempre em teste. Caçar os seus próprios ratos.
Levantou-se e espreguiçou. Seu corpo ainda doía. Mas ele estava feliz. Depois que ele finalmente descobriu os seus motivos de miadeiras jocosas, sua vida tinha mudado. Sempre tentava coisas novas. Começou engolindo um alfinete de segurança. Depois veneno de baratas. Seguiu-se o choque elétrico no cabo da tv e mais um salto da janela, sétimo andar. Tirando-se as escoriações e os ossos quebrados, não morreu, e estava ali ainda. Mesmo depois da sua última vitória. E seu mais novo vício.
Movendo-se para a cozinha relembrava. Tinha perdido quase todos os pelos, e até mesmo sua querida barriga branca. Maria tinha mania de dar-lhe banho todas as quartas feiras. Chamava-o de amorzinho, e dizia que era o dia feito para os namorados - logo, seu gatinho tinha que se arrumar. Thomas nunca foi rebelde para esse tipo de cerimônia. Só não gostava muito do inverno, quando ela costumava aquecer a água. Era estranho aquele líquido límpido e morno entrar pelos seus amados pelos. Ainda mais quando ela exagerava e deixava destemperada a mistura, prevalecendo a concentração de massa hídrica quente. E isso o deixava irritado.
Naquela quarta em especial, estava de mau humor. Como nos dias que prenunciam os gritos histéricos de Maria e os passeios de taxi ao hospital. Ele precisava de deafios. Queria sentir dor. Aguentá-la. Estava ao lado dos apetrechos coloquiais - bacia, toalhas, shampoo e a chaleira - quando o telefone tocou. Ele lambia as suas patas, fazendo a sua higiene mais íntima, quando viu ela atender. Ela estava muito feliz. E isso deixava ele mais tenso. Quando ele sofira, a felicidade dos outros era um dedo na ferida. Do mesmo modo não gostava que viessem interrogá-lo, cacofonicamente, sobre o que estava sentindo. Pulou da mesa.
Ele estudou o lindo bordado do trilho da mesa. Foi Maria mesmo que tinha feito. O trilho, o seu cobertor, a capa das almofadas. Aquelas mesmo que ela estava abraçando, sorridente, enquanto falava ao aparelinho preto. Como se fossem velhos conhecidos. Voltou ao seu trilho. Lembrou-se do calor daquele fluido nos seu couro. Era horrível. Aquele pelo colado no seu corpo, o aumento da sua temperatura ideal de funcionamento. As fumacinhas. Tudo aquilo era horrível. Era humilhante. Era exatamente o que ele precisava. Em um piscar de olhos, o trilho tinha se enrolado nas suas garras suicidas e a chaleira tinha derrubado todo o seu conteúdo naquela massa de pelos.
Ele sentiu muita dor. Auto destruição. Descontrole dos instintos. Liberdade. A mesma que tinha ouvido dos lábios de Maria dias antes. A liberdade: fazer algo que não se pode voltar atrás. Sentiu-se o maior dos vira latas, o mais experiente dos bichanos, o mestre de Silvester, Félix, Ike e do seu pobre homônimo. Mais forte que Lion, Pantro e todos aqueles vermes humanóides. Mais esperto que o Manda Chuvas. No meio desse frenesi ficou inconsciente. Agora, tempos depois, via sobre o fogão novamente a chaleira.
Dizem que é um vício sem volta. A depredação do próprio ser. A aniquilação do ente pelo seu próprio padecimento. O vai-ou-racha. A hora do medo. Ele não pensou duas vezes. Ele queria denovo. A antítese do gato escaldado. Ele amava a água quente. Ele era livre. E ele não tinha mais limites para testar. Tinha chegado ao ponto final, à encruzilhada do seu longo xadrez emocional. Era tempo de ver o que existia do outro lado. Thomas tinha ciência do seu estado físico. Sabia que não tinha como agüentar. Tinha descoberto todas as suas fronteiras. Só faltava uma.
Mais uma vez se ouviu o berro animalesco de Maria. Lgo depois do estrondo da chaleira no piso fro. E desta vez foi a última.
Acordou. Olhou ao redor. Estava sozinho. Dormiu ali na sala, no conforto do sofá desde aquela manhã, quando Maria o deixou. Sentia-se muito cansado. Mas isso era normal. Acontecia sempre que ele voltava do hospital. E como suas visitas tinham se tornado freqüentes - até mesmo bimestrais, podia-se dizer - nada daquilo significava mais que simples rotina. E isso ele detestava. Com todas as suas sete vidas.
Lambeu a pata direita com sua língua felpuda. Era muito asseado. Gostava de parecer belo. Principalmente para ele mesmo. Aliás, não existia nada mais importante que a manutenção do seu esguio corpo cinza de bigodes negors. Era simplesmente incomum. Não existiam muitos iguais a ele. Garantia o apreço quase imediato de quaisquer fêmea, desde porcas até gatas - em ambos os sentidos. Por isso estava lá. Maria ficou apaixonada por ele. Ainda mais pelo seu jeito quase canino de pedir carinho, exibindo a sua barriga branca, que lhe conferia o batismo: Thomas. E talvez venham daí as suas tendências psicóticas.
Se existisse um Freud felino, fatalmente analisaria como síndrome da falta de ratos. Mesmo com todos esses mimos ele era infeliz. Sexo uma vez por semana - cruzas choviam no apartamento. Comida farta. Muito carinho de todos os lados. Talvez pela quantidade dessas boas coisas ele não via muita importânica nisso tudo. E começou a agir de maneira estranha, há quase um ano. Maria põe a culpa naquela siamesa. Só que Thomas sabia que não era ela. Isso tudo era resultado das influências do destino. Queria virar lixo, ir às ruas. Provar que era viril numa briga, arrancar tufos, se livrar dos medos. Colocar-se sempre em teste. Caçar os seus próprios ratos.
Levantou-se e espreguiçou. Seu corpo ainda doía. Mas ele estava feliz. Depois que ele finalmente descobriu os seus motivos de miadeiras jocosas, sua vida tinha mudado. Sempre tentava coisas novas. Começou engolindo um alfinete de segurança. Depois veneno de baratas. Seguiu-se o choque elétrico no cabo da tv e mais um salto da janela, sétimo andar. Tirando-se as escoriações e os ossos quebrados, não morreu, e estava ali ainda. Mesmo depois da sua última vitória. E seu mais novo vício.
Movendo-se para a cozinha relembrava. Tinha perdido quase todos os pelos, e até mesmo sua querida barriga branca. Maria tinha mania de dar-lhe banho todas as quartas feiras. Chamava-o de amorzinho, e dizia que era o dia feito para os namorados - logo, seu gatinho tinha que se arrumar. Thomas nunca foi rebelde para esse tipo de cerimônia. Só não gostava muito do inverno, quando ela costumava aquecer a água. Era estranho aquele líquido límpido e morno entrar pelos seus amados pelos. Ainda mais quando ela exagerava e deixava destemperada a mistura, prevalecendo a concentração de massa hídrica quente. E isso o deixava irritado.
Naquela quarta em especial, estava de mau humor. Como nos dias que prenunciam os gritos histéricos de Maria e os passeios de taxi ao hospital. Ele precisava de deafios. Queria sentir dor. Aguentá-la. Estava ao lado dos apetrechos coloquiais - bacia, toalhas, shampoo e a chaleira - quando o telefone tocou. Ele lambia as suas patas, fazendo a sua higiene mais íntima, quando viu ela atender. Ela estava muito feliz. E isso deixava ele mais tenso. Quando ele sofira, a felicidade dos outros era um dedo na ferida. Do mesmo modo não gostava que viessem interrogá-lo, cacofonicamente, sobre o que estava sentindo. Pulou da mesa.
Ele estudou o lindo bordado do trilho da mesa. Foi Maria mesmo que tinha feito. O trilho, o seu cobertor, a capa das almofadas. Aquelas mesmo que ela estava abraçando, sorridente, enquanto falava ao aparelinho preto. Como se fossem velhos conhecidos. Voltou ao seu trilho. Lembrou-se do calor daquele fluido nos seu couro. Era horrível. Aquele pelo colado no seu corpo, o aumento da sua temperatura ideal de funcionamento. As fumacinhas. Tudo aquilo era horrível. Era humilhante. Era exatamente o que ele precisava. Em um piscar de olhos, o trilho tinha se enrolado nas suas garras suicidas e a chaleira tinha derrubado todo o seu conteúdo naquela massa de pelos.
Ele sentiu muita dor. Auto destruição. Descontrole dos instintos. Liberdade. A mesma que tinha ouvido dos lábios de Maria dias antes. A liberdade: fazer algo que não se pode voltar atrás. Sentiu-se o maior dos vira latas, o mais experiente dos bichanos, o mestre de Silvester, Félix, Ike e do seu pobre homônimo. Mais forte que Lion, Pantro e todos aqueles vermes humanóides. Mais esperto que o Manda Chuvas. No meio desse frenesi ficou inconsciente. Agora, tempos depois, via sobre o fogão novamente a chaleira.
Dizem que é um vício sem volta. A depredação do próprio ser. A aniquilação do ente pelo seu próprio padecimento. O vai-ou-racha. A hora do medo. Ele não pensou duas vezes. Ele queria denovo. A antítese do gato escaldado. Ele amava a água quente. Ele era livre. E ele não tinha mais limites para testar. Tinha chegado ao ponto final, à encruzilhada do seu longo xadrez emocional. Era tempo de ver o que existia do outro lado. Thomas tinha ciência do seu estado físico. Sabia que não tinha como agüentar. Tinha descoberto todas as suas fronteiras. Só faltava uma.
Mais uma vez se ouviu o berro animalesco de Maria. Lgo depois do estrondo da chaleira no piso fro. E desta vez foi a última.