Sonntag, September 15, 2002

GATOS E O PROVÉRBIO POPULAR

Acordou. Olhou ao redor. Estava sozinho. Dormiu ali na sala, no conforto do sofá desde aquela manhã, quando Maria o deixou. Sentia-se muito cansado. Mas isso era normal. Acontecia sempre que ele voltava do hospital. E como suas visitas tinham se tornado freqüentes - até mesmo bimestrais, podia-se dizer - nada daquilo significava mais que simples rotina. E isso ele detestava. Com todas as suas sete vidas.

Lambeu a pata direita com sua língua felpuda. Era muito asseado. Gostava de parecer belo. Principalmente para ele mesmo. Aliás, não existia nada mais importante que a manutenção do seu esguio corpo cinza de bigodes negors. Era simplesmente incomum. Não existiam muitos iguais a ele. Garantia o apreço quase imediato de quaisquer fêmea, desde porcas até gatas - em ambos os sentidos. Por isso estava lá. Maria ficou apaixonada por ele. Ainda mais pelo seu jeito quase canino de pedir carinho, exibindo a sua barriga branca, que lhe conferia o batismo: Thomas. E talvez venham daí as suas tendências psicóticas.

Se existisse um Freud felino, fatalmente analisaria como síndrome da falta de ratos. Mesmo com todos esses mimos ele era infeliz. Sexo uma vez por semana - cruzas choviam no apartamento. Comida farta. Muito carinho de todos os lados. Talvez pela quantidade dessas boas coisas ele não via muita importânica nisso tudo. E começou a agir de maneira estranha, há quase um ano. Maria põe a culpa naquela siamesa. Só que Thomas sabia que não era ela. Isso tudo era resultado das influências do destino. Queria virar lixo, ir às ruas. Provar que era viril numa briga, arrancar tufos, se livrar dos medos. Colocar-se sempre em teste. Caçar os seus próprios ratos.

Levantou-se e espreguiçou. Seu corpo ainda doía. Mas ele estava feliz. Depois que ele finalmente descobriu os seus motivos de miadeiras jocosas, sua vida tinha mudado. Sempre tentava coisas novas. Começou engolindo um alfinete de segurança. Depois veneno de baratas. Seguiu-se o choque elétrico no cabo da tv e mais um salto da janela, sétimo andar. Tirando-se as escoriações e os ossos quebrados, não morreu, e estava ali ainda. Mesmo depois da sua última vitória. E seu mais novo vício.

Movendo-se para a cozinha relembrava. Tinha perdido quase todos os pelos, e até mesmo sua querida barriga branca. Maria tinha mania de dar-lhe banho todas as quartas feiras. Chamava-o de amorzinho, e dizia que era o dia feito para os namorados - logo, seu gatinho tinha que se arrumar. Thomas nunca foi rebelde para esse tipo de cerimônia. Só não gostava muito do inverno, quando ela costumava aquecer a água. Era estranho aquele líquido límpido e morno entrar pelos seus amados pelos. Ainda mais quando ela exagerava e deixava destemperada a mistura, prevalecendo a concentração de massa hídrica quente. E isso o deixava irritado.

Naquela quarta em especial, estava de mau humor. Como nos dias que prenunciam os gritos histéricos de Maria e os passeios de taxi ao hospital. Ele precisava de deafios. Queria sentir dor. Aguentá-la. Estava ao lado dos apetrechos coloquiais - bacia, toalhas, shampoo e a chaleira - quando o telefone tocou. Ele lambia as suas patas, fazendo a sua higiene mais íntima, quando viu ela atender. Ela estava muito feliz. E isso deixava ele mais tenso. Quando ele sofira, a felicidade dos outros era um dedo na ferida. Do mesmo modo não gostava que viessem interrogá-lo, cacofonicamente, sobre o que estava sentindo. Pulou da mesa.

Ele estudou o lindo bordado do trilho da mesa. Foi Maria mesmo que tinha feito. O trilho, o seu cobertor, a capa das almofadas. Aquelas mesmo que ela estava abraçando, sorridente, enquanto falava ao aparelinho preto. Como se fossem velhos conhecidos. Voltou ao seu trilho. Lembrou-se do calor daquele fluido nos seu couro. Era horrível. Aquele pelo colado no seu corpo, o aumento da sua temperatura ideal de funcionamento. As fumacinhas. Tudo aquilo era horrível. Era humilhante. Era exatamente o que ele precisava. Em um piscar de olhos, o trilho tinha se enrolado nas suas garras suicidas e a chaleira tinha derrubado todo o seu conteúdo naquela massa de pelos.

Ele sentiu muita dor. Auto destruição. Descontrole dos instintos. Liberdade. A mesma que tinha ouvido dos lábios de Maria dias antes. A liberdade: fazer algo que não se pode voltar atrás. Sentiu-se o maior dos vira latas, o mais experiente dos bichanos, o mestre de Silvester, Félix, Ike e do seu pobre homônimo. Mais forte que Lion, Pantro e todos aqueles vermes humanóides. Mais esperto que o Manda Chuvas. No meio desse frenesi ficou inconsciente. Agora, tempos depois, via sobre o fogão novamente a chaleira.

Dizem que é um vício sem volta. A depredação do próprio ser. A aniquilação do ente pelo seu próprio padecimento. O vai-ou-racha. A hora do medo. Ele não pensou duas vezes. Ele queria denovo. A antítese do gato escaldado. Ele amava a água quente. Ele era livre. E ele não tinha mais limites para testar. Tinha chegado ao ponto final, à encruzilhada do seu longo xadrez emocional. Era tempo de ver o que existia do outro lado. Thomas tinha ciência do seu estado físico. Sabia que não tinha como agüentar. Tinha descoberto todas as suas fronteiras. Só faltava uma.

Mais uma vez se ouviu o berro animalesco de Maria. Lgo depois do estrondo da chaleira no piso fro. E desta vez foi a última.

Montag, September 09, 2002

PALAVRAS

Ele parou. Estava precisando de um tempo para pensar. Na vida, nesse monte de coisas que acontecem. Sozinho. Já fazia muito tempo, inclusive. Sentou no banco molhado pela chuva que acabou de cair. Tudo recendia aos gritos esbaforidos das rãs frenéticas que conclamavam os poderes de São Pedro. E no meio daquele silêncio, ele se prostrou a olhar o mar. Perdido. Como há tempos já se acostumara a ser.

No campo de visão dele, apenas aquele borrão preto recortado em uma imensidão roxa. As noites de chuva adoram ter esse aspecto selvagem. Essa coisa incontrolada, silenciosa, sombria e fascinante. Parecia que tinha o poder de suga-lo daquela cidade, que espreitava maliciosamente nas suas costas, para um lugar além. Lá no meio das constelações e estrelas, no meio do tempo em que as coisas são eternamente felizes. Do ladinho da loja de doces. E essa droga cem por cento natural era a sua, só sua, saída.

Tendo ciência que não seria pego nunca em flagrante - a não ser se aquele conhecido olho de raio x viesse novamente, ainda naquela noite, surpreender seu olhar vago - pôs-se a pensar na vida. Algo que ele estava muito acostumado a fazer, diga-se de passagem. Andar livremente pelos segundos que caíam na imensidão dos seus olhos castanhos encima do monte do esquecimento. Permitiu-se ainda um breve meneio da cabeça, para ter algo no que se firmar. Escolheu a luz amarela do poste que mostrava o índice do armazém.

Uma letra somente. Um "P", bem grande. Logo começou a maquinar tão rapidamente como podia. Seria esse P algum sinal? Estava mesmo ali para pensar na vida ou para finalmente receber dos céus o roteiro dos próximos capítulos da sua existência miserável? Naquele momento daria tudo por uma garrafa de whisky, para que pudesse sentir-se solto. Como um dançarino. Para deslizar entre as coisas na sua cabeça e desviar das lembranças tristes com graça. E principalmente para esquecer que aquilo tudo tinha um sentido, uma razão de ser.

O pê de ponto. De preto. Predestinação. O pê que sempre esteve ali. Pelo menos no tempo em que aquele armazém existiu. Ou que alguém se fez capaz de ler aquela letra. Porque a letra, por si, não é nada sem um olho para admirá-la. E, se juntarmos ela com outra, aí precisaremos de mais coisas para tal feito. Por exemplo, circunstâncias. A palavra é a massa, que precisa do molho para ser melhor apreciada. E isso se dá pela interpretação. Isso se dá pelos suspiros, gritos, olhares e conjuntos. Isso de dá com a noite preta que se descortina pálida atrás do pavilhão "P".

Mais um trocadilho barato. Essas malditas palavras sempre foram a sua vida. E ninguém entendia. Nem mesmo o calmo mar que servia de mesa para aquele colóquio literato privado. As palavras que dão vida. Dão sentido. Mais ou menos como os pais, quando batizam os filhos. Quando escolhem entre vinte e seis quais os bocados que identificarão seus rebentos para sempre. Aquelas que serão índices dos seus pavilhões, construídos debaixo daquele mesmo céu, mesmo se não estivesse escuro ou chuvoso. E que voltariam, como o mesmo mar, a bater na praia dele. E seriam seus amigos, amores e desafetos.

Pegou uma concha no chão. Não era muito grande, não dava para ouvir o que ela dizia. Não era como aquelas que a vó dele tinha. Ela jurava que ele poderia ouvir o mar e lembrar da casa dela sempre que quisesse. Como se estivesse ali, depois daquela esquina. Audível, porém intangível. Ali mais acolá. Só que o seu atalho para os doces e os verões foi dizimado pela física, que impulsionou a pequena varinha mágica com uma aceleração de nove ponto oito meros por segundo ao quadrado da mesa retangular para o chão irregular. E esse monte de palavras fizeram ele conhecer mais uma: distância.

Depois daquilo sua avó faleceu. Ele ficou muito triste, pensou que poderia ter ouvido com aquele finado aparato mágico a vó dele gritar, mais alto que as ondas do mar, que ele viesse salvá-la daquele monstro. E ele poderia, pois, afinal de contas, tinha o atalho, e podia levar os médicos para virar aquela esquina e chegar na casa. Salvar as suas lembranças. Ser útil. Ele lutou com toda a força, mas teve que aceitar o mais novo filho das suas entranhas machucadas: a saudade.

Tempos depois ele descobriu que aquilo tudo era ilusão. Mentiras. Tudo pode fazer aquele barulho parecido com o do mar. Uma xícara, as mãos em concha, um tapa no ouvido, encher as orelhas d'água. Tudo trazia a impressão que ele estava lá. Tanto que agora, de fato na frente do mar, não tinha certeza se estava lá. Podia estar dormindo, no seu travesseiro, com a mão sobre seu canal auditivo. Tirou os sapatos e deixou seu corpo mover até as pequenas ondas que se descabelavam na orla noturna.

Aquelas duas palavrinhas seriam as suas principais tristezas pelo resto da vida. Até aquele dia. Onde o mar brincava no meio dos seus dedos. E aquele pê ainda mostrava que as palavras estavam vivas, ali, com ele. E viu que esse era o grande inconveniente de crescer. Quando se aprende a ler, a única maneira de não saber o que quer dizer aquela frase na parede, é fechando os olhos. Desdobrando as letras. Transformando-as em códigos normândicos, sânscritos, qualquer coisa que seus neurônios não interpretassem. E era esse o motivo da gana que sentia pelas palavras estrangeiras.

Dede pequeno gostava de ouvir as palavras inteligíveis do rádio. Aquelas coisas que mais parecem um bêbado, ou alguém fazendo gargarejo. Esse interesse levou ele a querer saber o que estavam dizendo. Fez ele aprender inglês, alemão, francês. Interpretar os bêbados. Ouvir o que eles tinham para contar. E ouvir como a vida deles era desgraçada. Como as mulheres iam e vinham. Como as drogas dopavam. Como eram simples as formas do amor. E como era incompreensível o seu significado. Mesmo para quem sabia se comunicar com mais de oitenta por cento da população.

Cantarolou uma música antiga. Em inglês. E lembrou, então, de quando aquela menina veio fazer o teste. Foi na praia. Na casa da vó. Perto do mar. Estava tocando aquela música no radinho de pilha que ele tinha pego emprestado do vô. Ela pegou uma folha do diário dela e uma caneta. Eles estavam sentados na areia. A praia estava deserta, era frio. Mas o sol brilhava. E eles estavam lá, no cantinho deles. Ela perguntou nomes de meninas, nomes de animais, números. E na sua aritmética inocente deu todos os caminhos do futuro dele. Os filhos, onde moraria. E com quem casaria. Depois daquele dia eles não se viram mais. A mãe dela fugiu com o amante, levando a filha junto. Mas já estava feito. O futuro dele estava traçado.

Ele olhou novamente para o "P". Dar nome é fácil. O que voa é ave, o que flui é fluído. O céu, o sol, o mar. Tudo tem um nome que alguém inventou. Até o cangurú. E ele também inventou um, dezoito anos atrás, sentado na areia. Patrícia. Ele não conhecia nenhuma garota com esse nome. Só que ele disse, para completar o joguinho. E sua amiguinha revelou que ela seria sua companheira. Aquela pessoa que ele inventou.

A praga de se criar palavras é não vir a saber nunca qual é o seu real significado. Inventando um nome ele mentiu. Da mesma forma que quando lhe disseram que a concha era um atalho. Um refúgio. Mentira. Como quando disseram para ele que podia parar se quisesse. Da mesma maneira deslavada que repetem por aí "para sempre". Tal qual quando ele teve que dizer para si mesmo que fugir era o melhor meio. Do mesmo modo que ele tinha feito horas antes, quando disse que também amava.

Praguejou os gregos, os latinos e os fenícios. Daquele cuneiforme nasceu a sua mentira. Das pinturas rupestres o signo da sua ruína. Naquele monte de estrangeirismos, no meio do roxo do céu e do preto da água, sob seus pés naquele momento mesmo, estava o sentido da vida dele. E ele não sabia mais ler. Ele não era mais ingênuo o suficiente para entender que aquele mundo era apenas bêbado e engraçado, e que tudo eram apenas maneirismos importados.

Ele só queria entender. Ter um sentido na vida. Batizar a sua sina. E poder chamar o amor pelo seu próprio nome. Só que naquele momento começou a chover.