C'EST LA VIE
João. Esse era o cara. Quase na Academia. Muitos chamavam-no de Best Seller. Os livros dele não paravam nas livrarias. Mesmo nesse nosso país de gente desacostumada a ler. O pessoal lia o Notícias Populares e ele. Fenômeno. Internacionalmente conhecido, dava palestras em diversos países. Carismático, atencioso. Tinha também um site interativo de novas criações, onde os visitantes podiam vê-lo escrevendo
on-line, em
real time. Prova de que além de mestre nas palavras era muito bom de fazer dinheiro.
Muita gente tentou explicar o que era ele. Como ele conseguiu galgar tamanho sucesso? Textos simplórios, alguns erros de português. Não era tão barato. Livro grosso, geralmente. Poderia ser por simpatia aos seus diários nos jornais (aqui e lá fora). Se bem que os jornais vieram somente depois da fama. Em conversas com amigos ele chegou a confiar (não deveria, se até eu já estou sabendo) que seu diferencial era de ordem cardíaca: escrevia o que os corações queriam ler.
Suas histórias sempre tinham a ver com romance. Não importando se ele escrevia sobre banheiros, brejos, beijos ou bocejos. O mocinho estava lá, era só folhear. E o amor dele podia aparecer no próximo parágrafo, para se perder na página sequente. Narrava os sofrimentos, dúvidas e apaixonites com precisão ímpar. Isso motivava as pessoas a lerem. Escrevia sobre coisas que todos sentiam, mas tinham vergonha de assumir. E viam nos textos dele uma auto-análise. Teve gente que até se ofendeu com as palavras dele, achando que eram escritas exatamente para elas. Nunca. O João nem mesmo quer saber o nome de seus fãs. Quer padecer sozinho.
Outros tentaram se passar por ele, não com seu nome, mas com obra parecida com a dele. Mas, por mais que se esforçassem, não conseguiam tamanha acuracidade sentimental. Isso por que as dores dele tinham um nome. Pelo menos era o que se cochichava nos becos. Um ex-amor. Dizem que ele ficou muito mal por muito tempo. Perdeu empregos, amigos, chances. Se entregou ao vício. Até que resolveu começar a por tudo para fora pela ponta dos dedos. E estourou. Mas ele nunca confirmou. Até agora.
Ia ficar muito difícil esconder aquela garota que tentava espiar pelo olho mágico para dentro. João tinha interrompido o clímax da sua última jóia para atender a porta. Quando viu quem era, sentiu sua velha taquicardia balançar as teias de aranha e se espreguiçar, começando logo após uma interação rímtmica tamanha que parecia uma turma de dançarinos formandos em rumba. Demorou cento e cinqüenta anos para abrir a porta e mais uns duzentos para conseguir dar um sorriso. Ela estava linda.
- Oi John. Lembra de mim?
Como ia esquecer. Relembrando todo o dia, em cada linha, em verso, prosa e
jingle de supermercado. Sem chance. Podia passar para a próxima piada. Ela entrou, ele pode fechar a porta. Passou todos os tipos de tranca que tinha, colocando inclusive uma cadeira na frente. Pode chamar de auto defesa. Inconsiente talvez.
- As coisas por aqui não mudaram nada...- Desfilando suas pétalas pela casa.
- Superficialmente, Ana.
- Isso quer dizer que as gavetas e armários estão diferentes?
Senso de humor. Pode ser que era isso que ele tanto sentia falta. Ela não tinha perdido o jeito. Sempre desconversando com aquele jeito lindo. Palavras. Ele se apaixonou pelas palavras dela desda primeira vez que ouviu. Telemarketing. Depois foi por escrito, com uma foto inclusive. Foi o "cordialmente" batido a máquina mais sexy que ele já viu. Remmingway. Além de tudo era clássica.
- Viajando denovo John?
- Desculpe.
- Não por isso... o que tem feito além de escrever?
- Escrevendo.
- Sim, mas como vai a vida?
- Esta é minha vida agora... - Pegando um livro.
- Sempre foi esse o teu mundo, John.
- Não até tu me largar.
Silêncio. John tinha aquela mania cretina de dizer frases de impacto. Sempre acabava sendo crucial. Encerrava qualquer conversa, deixando os interloucutores entre pasmos, intrigados e sem jeito com suas verdades. Ela sorriu. Ele só não desabou porque estava sentado.
- Tenho lido teus livros.
- Me sinto honrado.
- São muito bons. Já me peguei chorando e torcendo no meio das minhas leituras.
- Só escrevo o que sinto.
João não queria ser seco, mas era a única maneira de não perder a compostura. Ele tinha vontade de se atirar no chão, chorar, pedir que ela voltasse, esquecesse o passado. Ela era a vida dele. Ele queria parar de ter motivos para escrever, queria apenas uma vida normal.
- Nos conhecemos bem John. E acho que sei o que tu quer dizer com cada uma das tuas histórias.
Não, ele não achava que sabia. Ela não amou ele o suficiente. Simplesmente conviveu com ele, fez de gato e sapato. Brinquedinho. Bobinho e indefeso João.
- E acho que chegou a hora de te dizer algo muito importante. Sabe John, muito tempo já se passou desde que nos separamos.
Pronto. Podia se preparar para morrer. Ele sabia o que viria. Já tinha escrito isso quando Mary conversava com Leopold na tricentésima octoagésima quarta página de seu segundo livro,
Os Invernos Serão Frios. Isso era um comunicado de novo amor. Conheceu alguém e quer contar que vão casar. Pobre João.
- Olha, somos crescidos Jo. Já sabemos o que queremos da vida, temos nossas carreiras, nossas prioridades.
João pensava: "Deve ser rico, talvez advogado, médico, sei lá... Pobre de mim. Ela vai pisar na ferida, passar álcool e um pouco de sal. É a bruxa mais linda do mundo, cruel. Não, não, não... Mais uma vez não vou agüentar."
- E tenho que te fazer uma grave revelação. Jo, olha pra mim!
"Vou virar pedra se fizer isso, doce medusa. Não vou olhar para mais nada. Só vou fitar. Sentir as sensações do mundo pelos órgãos dos outros, para poder dilacerar meus sentimentos como tu estás fazendo com meu pobre coração. Nobre princesa, outrora dona do meu ser, agora regurgita os sentimentos do amado como se nunca fosse por esse nome batizado." Olhando para ela "Enfia em mim essas garras de seda e tira de dentro do meu peito esse câncer que só serve para enrigar de sangue meu corpo podre"
- Eu te amo. Te quero devolta. Não sei porque te larguei, mas não consigo viver sem você.
"..."
- Como é que é?
- Jo, eu te amo. - Sorrindo.
João levantou e caminhou até a porta. Tirou as trancas e a cadeira. Abriu.
- Sai daqui Ana.
- Mas Jo...
- SAI DAQUI! E NÃO VOLTA MAIS!
- Jo...
- CHEEEEGAAA!!
Ana saiu correndo antes que ele perdesse a calma. João chorou muito, bebeu deveras. Teve úlceras, febre, consumiu drogas e xingou a mãe do motorista de ônibus, seminu, pendurado na janela do apartamento. Mas ia sobreviver. Já tinha acontecido antes. Foi melhor assim. Resolveu se preservar. Já tinha perdido a namorada, perder a musa inspiradora era demais. Afinal, tinha que terminar um livro.
Ah, Se Ela Batesse à Minha PortaFoi o seu maior título em cifras - récorde nacional.
É a vida.