Freitag, November 29, 2002

SER

Meu relógio. Não é meu. Eu paguei por ele, uso ele faz tempo. Só que ele, na escência, não é meu. Por uma questão de atitude. Eu uso ele assim, virado ao contrário, de modo que todas as vezes que quero ver as horas olho a palma e não as costas da minha mão. A razão é simples: acho legal. Diferente. Só que ao mesmo tempo, isso não é meu. É apenas um hábito de um antigo colega meu, que fazia o mesmo. Eu copiei.

Meus óculos. Não são meus. Embora apenas eu tenha esses indivíduos estampados no rosto. Mesmo parcelando o pagamento em seis vezes no carnê pago todos os meses com dinheiro saído do meu bolso. Na realidade, eu vi um cara na TV usando esses mesmos óculos. E achei bonito.

Minhas frases. Embora saiam com desenvoltura dos meus dedos e tenham proveniência da minha cachola, também não são minhas. São apenas pedaços de conversas ouvidas ou mesmo proferidas em algum lugar da minha vida real ou imaginária. Pedaços de livros, cartas, contos ou mesmo piadas antigas. Partes de anúncios que são apenas transformados por um espírito que nem mesmo meu é; apenas espelha uma série de preconceitos impostos pela minha obscura passagem neste existir.

Em resumo, isso que tu está vendo não é nada a não ser o retrato de um frankenstein. Eu não sou eu. Eu não me pertenço. Apenas existo porque tu existe, a televisão existe, a cachaça existe. Eu sou recortes de outras vidas privadas que se perderam no caminho e se juntaram em uma moldura vazia. Como todos os que estão aqui. Como tu também.

Somos todos. E somos nenhum.

Donnerstag, November 28, 2002

BRADOS GRITADOS

O Hino Nacional. O cacófano nosso hino. Desde pequeno eu tive que aprender a cantá-lo. Coisas da Educação Moral e Cívica, um dos últimos reflexos da ditadura militar. Fazia parte da formação estudantil daquela época o patriotismo obrigatório. Embora eu não soubesse o que isso significava, e hoje não faça aos meus ouvidos sentido algum. O tipo de exigência insana que não gera nada mais do que rebeldia de mesmo quilate - que na época eram as versões do hino, que as vezes eram flagradas e punidas por horrorizados professores. Muita criatividade e pureza manchada de crianças marotas. Se o Bilac soubesse...

E haviam provas orais de cantoria de hinos. Lembro muito bem. Eram as avaliações de Moral e Cívica. Hino Rio Grandense, Hino Nacional, o da minha cidade, o da bandeira, da independência, uma grande quantidade de cantorias que me lembravam sempre as infelizes aulas de catequismo e suas quinhentas mil e seicentas rezas diferentes. Eu gostava de cantar o hino da minha cidade e o do estado, principalmente, só não gostava muito do do Brasil. Era muito complicado. Muitas palavras difíceis, que eu nem sabia o que significavam. Nem eu nem nenhuma das outras trinta e cinco bocas que cantavam aquelas palavras em uníssono imperfeito e descompassado, ajudados pela minha voz infantil. E as professoras adoravam.

Um dos meus maiores enganos com a poesia pátria me causa risos hoje. Era um pequeno verso, logo no início. Esses dias mesmo eu pensava nisso. Era algo assim: "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas, de um povo heróico um brado redundante..." Certo, estava escrito diferente no papel, mas até um de meus colegas me chamar a atenção para este erro, eu cantava alegremente a dita passagem. Ainda bem que eu era criança, e a repressão tinha terminado, senão eu podia ser acusado de subversão.

Verso cômico. Qual seria o grande brado redundante proferido por Dom Pedro às margens do famoso riacho? Algo tipo "Libertem-se a si mesmos!", ou quem sabe "Independência e Liberdade!", ou similares. Se eu fosse um membro do séquito que os pintores românticos retrataram ao longo da história, aludindo à façanha, com certeza eu seria aquele que estaria segurando a barriga e não a espada, de tantos risos. Provavelmente um puxa saco real ia lembrar vossa alteza das regras de português, mas Bilac tinha feito justiça com essa mensagem subliminar no célebre hino.

Pode ser isso mesmo. Uma mensagem subliminar. Seria o Grito Redundante uma profecia para os dias vindouros do futuro. Significaria toda a indignação de um povo que, só de birra, resolve cantar o hino de manmeira errada, demonstrando um protesto intelectual contra todas as atrocidades que já sofreu durante sua história. Uma forma aguda e intrigante de mostrar força contra um governo que não escuta o fraco. Gesto utilizado até mesmo pelos jogadores de futebol, que não cantam o hino não por ignorância, mas por teimosia, mostrando aos senhores feudais nacionais que os humildes podem ter acessos woodyalleanos, que sabem fazer troça criticando. A maior prova de que o brasileiro é feito de fé e garra.

Ou, sinal de que os marqueteiros dos cotonetes são muito ruins mesmo.