Mittwoch, Mai 28, 2003

FOTOS

Ele ia tirar uma fotocópia - ah, vai lá, um xerox - daquele livro. Era muito bonito, milhões de afrescos. Coisa rara, do século XVI. Dava até pena de folhar. Mas tinha uma informação de vital importância lá. Era coisa de família, parece. Então ele pôs o livro debaixo do braço e rumou para a portaria.

Lá chegando, o semi corcunda de notre dame assexuado (não dava para precisar o que aquilo era) escolheu na gaveta seu melhor sermão sobre conservação de materiais antigos que o indivíduo, de seus metro e oitenta, acabou com metro e vinte. Quase cortou os pulsos, inclusive. "Uma fotocópia encurta a vida útil do papel em cinqüenta anos! Ouviu bem! Mais tempo que tu tem de vida, mocinho! As luzes tiram o brilho da tinta do papel, tiram sempre um pedaço das coisas! E se tirarem muitas cópias, logo alguém não vai mais poder ler! Alteram as cores! É um crime!" E ele se sentindo um monstro.

De volta a sua mesa ele viu que ela tinha razão. Rasgou as páginas que interessavam, dobrou, pôs no bolso e foi embora. Afinal, ele não era um monstro para fazer sumir aquele dado histórico do mundo tirando um xerox. Dignidade acima de tudo.

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Ela era bonita e muito famosa. Desde os doze anos fotografando. Modelo. Récorde de participações em desfiles, revistas, jornais e outros meios. Milão, Paris, Nova Yorque e Tóquio eram o seu quintal. Muitos homens aos seus pés. A preferida de onze em dez fotógrafos. Ela ficava bonita até mesmo vestida de mocotó azedo laranja fumê. Se é que alguém pensou nessa roupa.

Vinte anos depois, a garota estava em crise. Se olhava no espelho e não conseguia ver nada mais que uma mancha opaca. Tinha perdido os contornos. Ainda existiam, mas estavam fracos. As formas eram as mesmas, quase por milagre, mas faltavam as linhas. Pálidas. Desfocadas. O cabelo já não eram mais negros, eram meio cinzas, embora não grisalhos. O sorriso parecia aqueles de comercial de sabão em pó. Triste. Mas ainda era fotografada. Buscavam mostrar dela aquilo que morreu. Realçavam com quilos de maquiagem. Ainda a queriam sugar. Mais um poquinho.

Ontem ninguém achou mais ela. Sumiu. Desapareceu. A mãe dela, bibliotecária antiqüíssima do acervo estadual era a mais inconformada. Ela havia avisado. As fotos roubam pedaços. Pena ninguém ter lhe dado ouvidos.

Dienstag, März 04, 2003

REALIDADES CRUÉIS

Escuto palmas no portão. Vou ver quem bate as três da tarde de um feriado. Um garotinho. Cinco anos, no máximo. A camiseta e o calção deviam ter mais, porém. A voz era muito fraquinha.

- Tio, tem um serviço?

- O quê?

- Um serviço. Pra eu fazer.

- Tu quer um serviço? - Incrédulo, fascinado.

- Sim. Pra comprá leite pro nenê.

Eu não sabia, realmente, o que dizer. Era tocante ver aquilo, menor que minha cintura, me pedindo um emprego. Um serviço. Mas, no entanto, usei meu lado racional pra analisar essa história. Um serviço... Roçar pátio é um. Por que o pai dele não roça pátios? O meu tá com um matagal do caramba, ele podia resolver, pensei. E logo pensei num motivo simples pra recusar dar um para ele. Seria desumano se eu desse. Qualquer um pensaria isso. Inclusive o pai dele.

- Amiguinho, desculpe, eu não tenho um serviço.

- Mas é pa eu compra um arrois e um feijão.

Foi uma das coisas mais cortantes que alguém me disse. Era crueldade tudo aquilo. Ver aqueles olhos completamente mortos me encarando como mais um dos que negavam. Ter que ouvir aquelas palavras chicoteando meu senso humanitário. Pensar que não adiantaria nada. Como é que a situação pode chegar a esse ponto? Era mais cruel ainda tomar aquela decisão. Mas eu seria firme. Eu não daria nada para ele. Talvez assim seus pais desistissem.

- Não, não tenho. Desculpe.

- Então só um arrois, um feijão. É pra criança.

Infeliz a mente de quem bolou isso. A pessoa que aconselhou esse garoto a fazer isso só pode ser um monstro. Sem alma. Podre. Rastejante. Quase tanto quanto eu, que estou negando isso. Mas é melhor para ele. Será mesmo?

- Não, garoto. Não tenho nada mesmo.

- Mas...

- Não tenho, desculpe.

Virei as costas e saí. Dói até agora. Merda de país que não cuida dos seus. Merda de sociólogos que discutem uma situação irracional. Merda de políticos que votam um aumento de 59% nos seus salários enquanto essa migalha humana mendiga com astúcia cruel. Merda de condição essa que não me deixa escolha nenhuma, senão negar um paliativo e torcer para que tudo se resolva. Maldita é a impotência. Malditos os escrúpulos e toda a falta deles. Maldita a minha existência, meus pensamentos e toda a racionalidade que cultivei. Mas, porra, o que tu faria na minha situação?

Sonntag, März 02, 2003

MARCHINHA

O teu cabelo não nega, mulata...

E eu lá. Sem fantasia decente, sem grana para tal. Nem sabia porque não existia dinheiro lá em casa, mas fazer o que? Sair só com a camiseta de super homem e uma bermuda, oras! Com uma conga. É. Azul. Era esse o meu traje, na primeira matinê de carnaval da minha vida. Tinha uns cabelos claros, finos e escorridos - completamente diferente de hoje. E disposição para ir a um treco desses. E uma mãe com muita vontade de festejar a sua condição de maternidade.

... por que és mulata na cor...

Chegando lá, duzentos e cinquenta e cinco mil pessoas. Pelo menos na minha contagem. Nunca tinha visto tanta gente. Nem nos recreios. Era uma multidão. Todo o povo de Canoas. Eu acho. Muitas crianças, fantasias, papeizinhos circulares multicoloridos que caiam do forro como uma chuva de arco íris. E uns papeizinhos super divertidos de enrolar, como a minha mãe queria que eu acreitasse.

... mas como a cor não nega, mulata...

Muita gente corria, e eu ali. Começou a crescer, em meio aquela multidão, um desejo incontrolável e desconhecido em mim. Pelo manos na minha pequena memória ocupada por apenas seis anos de dados, na época. Meninas, meninos, dancinhas, pega-pega, quase comi confetes. Suor, calor. E musiquinhas de carnaval.

... mulata quero seu amor!

Nesse momento irrompeu. Vômito. Torrencial. E estava, assim, começando meu pânico por carnaval.

Dienstag, Dezember 10, 2002

CÍRCULO VICIOSO

Um cara acorda de ovo virado. Está completamente puto da cara com tudo. Briga com a torradeira, com o chuveiro e sai sem café porque a torradeira é sentimental. Depois de mandar o motorista, o cobrador e um passageiro visitarem a terra das mães da zona, chegou no trabalho. Como todos os dias infelizes antes daquele. Tem um problema muito grande, gerado na noite anterior, que o deixou extremamente triste. E esse é seu modo de explodir isso para o mundo. E é desse modo que ele rebate um adorável "Oi, Geovani!" da linda secretária do patrão.

A garota é sensível. Ela é uma espécie de esponja, como chamamos. E fica muito triste com o modo gentilíssimo que o rapaz usou com ela. E isso desperta nela sentimenotos há muito esquecidos de rejeição - desde o não do pai quando ela queria aquela boneca, a olhada fria e repreensiva de seu gato predileto e, é claro, o namoradinho aquele que enganou ela nos tempos de primário. E foi com esse ânimo que ela foi encontrar o rapaz que ela conheceu na discoteca, duas noites atrás.

O cara não conhecia a garota. E sentiu, com a mais absoluta certeza, que o culpado daquilo tudo era ele. Como por sinal, tudo o que acontece na sua vida. Mais uma vez ele deixava aquela oportunidade de ouro, aquela garota simpática da outra noite, passar pelo meio de seus dedos. Ela não seria mais a mãe de seus filhos, aquele novo encontro estava completamente descartado e o smoking da cerimônia matrimonial ia ficar mesmo na vitrine. O strogonoff estava simplesmente sem gosto, o molho frio, e o estômago doendo, tudo por causa dos olhos da menina.

Foi por isso que a mãe do rapaz não dormiu naquela noite. Tinha ficado esperando acordada em casa a volta do seu queridinho. Estava orgulhosa do rapaz. Afinal ele estava tão empolgado! Difícil seria reconhecer - se não fosse mãe dele, óbvio, que conhece o filho como a palma de sua mão - aquele espectro que chegou, comeu uma banana, escovou os dentes e se atirou na cama, barriga para cima, olhando como se o ventilador fosse a coisa mais enigmática da história. Ela sentiu a dor do garoto multiplicada pela dor do parto e teve olheiras. E mães sempre se entristecem fácil.

E assim foi. Deve até ter chegado em ti. E se isso aconteceu, vê se dá um basta; dá um sorriso. É o único jeito.

Freitag, November 29, 2002

SER

Meu relógio. Não é meu. Eu paguei por ele, uso ele faz tempo. Só que ele, na escência, não é meu. Por uma questão de atitude. Eu uso ele assim, virado ao contrário, de modo que todas as vezes que quero ver as horas olho a palma e não as costas da minha mão. A razão é simples: acho legal. Diferente. Só que ao mesmo tempo, isso não é meu. É apenas um hábito de um antigo colega meu, que fazia o mesmo. Eu copiei.

Meus óculos. Não são meus. Embora apenas eu tenha esses indivíduos estampados no rosto. Mesmo parcelando o pagamento em seis vezes no carnê pago todos os meses com dinheiro saído do meu bolso. Na realidade, eu vi um cara na TV usando esses mesmos óculos. E achei bonito.

Minhas frases. Embora saiam com desenvoltura dos meus dedos e tenham proveniência da minha cachola, também não são minhas. São apenas pedaços de conversas ouvidas ou mesmo proferidas em algum lugar da minha vida real ou imaginária. Pedaços de livros, cartas, contos ou mesmo piadas antigas. Partes de anúncios que são apenas transformados por um espírito que nem mesmo meu é; apenas espelha uma série de preconceitos impostos pela minha obscura passagem neste existir.

Em resumo, isso que tu está vendo não é nada a não ser o retrato de um frankenstein. Eu não sou eu. Eu não me pertenço. Apenas existo porque tu existe, a televisão existe, a cachaça existe. Eu sou recortes de outras vidas privadas que se perderam no caminho e se juntaram em uma moldura vazia. Como todos os que estão aqui. Como tu também.

Somos todos. E somos nenhum.

Donnerstag, November 28, 2002

BRADOS GRITADOS

O Hino Nacional. O cacófano nosso hino. Desde pequeno eu tive que aprender a cantá-lo. Coisas da Educação Moral e Cívica, um dos últimos reflexos da ditadura militar. Fazia parte da formação estudantil daquela época o patriotismo obrigatório. Embora eu não soubesse o que isso significava, e hoje não faça aos meus ouvidos sentido algum. O tipo de exigência insana que não gera nada mais do que rebeldia de mesmo quilate - que na época eram as versões do hino, que as vezes eram flagradas e punidas por horrorizados professores. Muita criatividade e pureza manchada de crianças marotas. Se o Bilac soubesse...

E haviam provas orais de cantoria de hinos. Lembro muito bem. Eram as avaliações de Moral e Cívica. Hino Rio Grandense, Hino Nacional, o da minha cidade, o da bandeira, da independência, uma grande quantidade de cantorias que me lembravam sempre as infelizes aulas de catequismo e suas quinhentas mil e seicentas rezas diferentes. Eu gostava de cantar o hino da minha cidade e o do estado, principalmente, só não gostava muito do do Brasil. Era muito complicado. Muitas palavras difíceis, que eu nem sabia o que significavam. Nem eu nem nenhuma das outras trinta e cinco bocas que cantavam aquelas palavras em uníssono imperfeito e descompassado, ajudados pela minha voz infantil. E as professoras adoravam.

Um dos meus maiores enganos com a poesia pátria me causa risos hoje. Era um pequeno verso, logo no início. Esses dias mesmo eu pensava nisso. Era algo assim: "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas, de um povo heróico um brado redundante..." Certo, estava escrito diferente no papel, mas até um de meus colegas me chamar a atenção para este erro, eu cantava alegremente a dita passagem. Ainda bem que eu era criança, e a repressão tinha terminado, senão eu podia ser acusado de subversão.

Verso cômico. Qual seria o grande brado redundante proferido por Dom Pedro às margens do famoso riacho? Algo tipo "Libertem-se a si mesmos!", ou quem sabe "Independência e Liberdade!", ou similares. Se eu fosse um membro do séquito que os pintores românticos retrataram ao longo da história, aludindo à façanha, com certeza eu seria aquele que estaria segurando a barriga e não a espada, de tantos risos. Provavelmente um puxa saco real ia lembrar vossa alteza das regras de português, mas Bilac tinha feito justiça com essa mensagem subliminar no célebre hino.

Pode ser isso mesmo. Uma mensagem subliminar. Seria o Grito Redundante uma profecia para os dias vindouros do futuro. Significaria toda a indignação de um povo que, só de birra, resolve cantar o hino de manmeira errada, demonstrando um protesto intelectual contra todas as atrocidades que já sofreu durante sua história. Uma forma aguda e intrigante de mostrar força contra um governo que não escuta o fraco. Gesto utilizado até mesmo pelos jogadores de futebol, que não cantam o hino não por ignorância, mas por teimosia, mostrando aos senhores feudais nacionais que os humildes podem ter acessos woodyalleanos, que sabem fazer troça criticando. A maior prova de que o brasileiro é feito de fé e garra.

Ou, sinal de que os marqueteiros dos cotonetes são muito ruins mesmo.

Donnerstag, Oktober 10, 2002

GUERRAS PESSOAIS

Ele estava nervoso. E fazia tempo. Não entendia bem o motivo. Mas as coisas pareciam que estavam fora de seu controle. Não tinha nada para se preocupar, com a mais absoluta certeza: nem emprego, nem moradia, tampouco dinheiro. Mesmo assim, a vida de estudante profissional era uma das coisas mais complicadas e estressantes do mundo. Todos nós já pensamos assim. O que não faz a falta de visão, hein? Ou seria verdade mesmo, e temos a mania de sempre achar que estamos em um momento pior que o anterior ? Seja como for, ele sofria. E ainda mais por não saber o que essa palavra significava.

Sentado nos bancos da escola, não tinha vontade de assistir as aulas. Ficava os dias inteiros, as vezes, de bobeira. Olhando os eucaliptos. Como se aquelas árvores tivessem o poder de dizer a palavra mágica que salvaria o seu mundo recém nascido da desgraça. E adorava os dias de chuva. Porque as cores ficavam mais vivas, e aqueles imensos vegetais mais comunicativos. Esvasiava a cabeça e olhava. Tentava escutar. Mas só ouvia os schlecht, schlecht (ou sei lá eu que barulho aquelas coisas faziam) das árvores dançantes. Nenhuma resposta.

Seus amigos já tinham desistido de conversar com ele. Sabia ser chato quando queria. E esse era o momento. Semrpe de mau humor, conseguia afastar todo o mundo com seus comentários ácidos. Queria parecer de pedra, mostrar para todo mundo que não doía, que tinha o controle total das coisas que aconteciam. E se tornava antipático. Respondia um "oi, tudo bem?" com um "o que deveria estar ruim?" ou coisas do gênero. Rendia, obviamente, muitos momentos de contemplação solitária.

No fundo, ele só queria era ser compreendido. Queria poder xingar alguém absurdamente, eqüinamernte, extrapoladamente, e depois de tudo abrir os olhos e ver que não tinha saido dali. Que ainda tinha alguém com ele, agüentando o mau humor. Que não tinha se tornado uma vítima de um mal desconhecido e criado por sentimentos confusos de uma mente ociosa.

Mas existem algumas batalhas que nasceram para serem perdidas. E isso é bom. É uma pena que ele só vá aprender isso tempos depois, quando as suas dores já forem apenas bobeiras de criança.

Sonntag, September 15, 2002

GATOS E O PROVÉRBIO POPULAR

Acordou. Olhou ao redor. Estava sozinho. Dormiu ali na sala, no conforto do sofá desde aquela manhã, quando Maria o deixou. Sentia-se muito cansado. Mas isso era normal. Acontecia sempre que ele voltava do hospital. E como suas visitas tinham se tornado freqüentes - até mesmo bimestrais, podia-se dizer - nada daquilo significava mais que simples rotina. E isso ele detestava. Com todas as suas sete vidas.

Lambeu a pata direita com sua língua felpuda. Era muito asseado. Gostava de parecer belo. Principalmente para ele mesmo. Aliás, não existia nada mais importante que a manutenção do seu esguio corpo cinza de bigodes negors. Era simplesmente incomum. Não existiam muitos iguais a ele. Garantia o apreço quase imediato de quaisquer fêmea, desde porcas até gatas - em ambos os sentidos. Por isso estava lá. Maria ficou apaixonada por ele. Ainda mais pelo seu jeito quase canino de pedir carinho, exibindo a sua barriga branca, que lhe conferia o batismo: Thomas. E talvez venham daí as suas tendências psicóticas.

Se existisse um Freud felino, fatalmente analisaria como síndrome da falta de ratos. Mesmo com todos esses mimos ele era infeliz. Sexo uma vez por semana - cruzas choviam no apartamento. Comida farta. Muito carinho de todos os lados. Talvez pela quantidade dessas boas coisas ele não via muita importânica nisso tudo. E começou a agir de maneira estranha, há quase um ano. Maria põe a culpa naquela siamesa. Só que Thomas sabia que não era ela. Isso tudo era resultado das influências do destino. Queria virar lixo, ir às ruas. Provar que era viril numa briga, arrancar tufos, se livrar dos medos. Colocar-se sempre em teste. Caçar os seus próprios ratos.

Levantou-se e espreguiçou. Seu corpo ainda doía. Mas ele estava feliz. Depois que ele finalmente descobriu os seus motivos de miadeiras jocosas, sua vida tinha mudado. Sempre tentava coisas novas. Começou engolindo um alfinete de segurança. Depois veneno de baratas. Seguiu-se o choque elétrico no cabo da tv e mais um salto da janela, sétimo andar. Tirando-se as escoriações e os ossos quebrados, não morreu, e estava ali ainda. Mesmo depois da sua última vitória. E seu mais novo vício.

Movendo-se para a cozinha relembrava. Tinha perdido quase todos os pelos, e até mesmo sua querida barriga branca. Maria tinha mania de dar-lhe banho todas as quartas feiras. Chamava-o de amorzinho, e dizia que era o dia feito para os namorados - logo, seu gatinho tinha que se arrumar. Thomas nunca foi rebelde para esse tipo de cerimônia. Só não gostava muito do inverno, quando ela costumava aquecer a água. Era estranho aquele líquido límpido e morno entrar pelos seus amados pelos. Ainda mais quando ela exagerava e deixava destemperada a mistura, prevalecendo a concentração de massa hídrica quente. E isso o deixava irritado.

Naquela quarta em especial, estava de mau humor. Como nos dias que prenunciam os gritos histéricos de Maria e os passeios de taxi ao hospital. Ele precisava de deafios. Queria sentir dor. Aguentá-la. Estava ao lado dos apetrechos coloquiais - bacia, toalhas, shampoo e a chaleira - quando o telefone tocou. Ele lambia as suas patas, fazendo a sua higiene mais íntima, quando viu ela atender. Ela estava muito feliz. E isso deixava ele mais tenso. Quando ele sofira, a felicidade dos outros era um dedo na ferida. Do mesmo modo não gostava que viessem interrogá-lo, cacofonicamente, sobre o que estava sentindo. Pulou da mesa.

Ele estudou o lindo bordado do trilho da mesa. Foi Maria mesmo que tinha feito. O trilho, o seu cobertor, a capa das almofadas. Aquelas mesmo que ela estava abraçando, sorridente, enquanto falava ao aparelinho preto. Como se fossem velhos conhecidos. Voltou ao seu trilho. Lembrou-se do calor daquele fluido nos seu couro. Era horrível. Aquele pelo colado no seu corpo, o aumento da sua temperatura ideal de funcionamento. As fumacinhas. Tudo aquilo era horrível. Era humilhante. Era exatamente o que ele precisava. Em um piscar de olhos, o trilho tinha se enrolado nas suas garras suicidas e a chaleira tinha derrubado todo o seu conteúdo naquela massa de pelos.

Ele sentiu muita dor. Auto destruição. Descontrole dos instintos. Liberdade. A mesma que tinha ouvido dos lábios de Maria dias antes. A liberdade: fazer algo que não se pode voltar atrás. Sentiu-se o maior dos vira latas, o mais experiente dos bichanos, o mestre de Silvester, Félix, Ike e do seu pobre homônimo. Mais forte que Lion, Pantro e todos aqueles vermes humanóides. Mais esperto que o Manda Chuvas. No meio desse frenesi ficou inconsciente. Agora, tempos depois, via sobre o fogão novamente a chaleira.

Dizem que é um vício sem volta. A depredação do próprio ser. A aniquilação do ente pelo seu próprio padecimento. O vai-ou-racha. A hora do medo. Ele não pensou duas vezes. Ele queria denovo. A antítese do gato escaldado. Ele amava a água quente. Ele era livre. E ele não tinha mais limites para testar. Tinha chegado ao ponto final, à encruzilhada do seu longo xadrez emocional. Era tempo de ver o que existia do outro lado. Thomas tinha ciência do seu estado físico. Sabia que não tinha como agüentar. Tinha descoberto todas as suas fronteiras. Só faltava uma.

Mais uma vez se ouviu o berro animalesco de Maria. Lgo depois do estrondo da chaleira no piso fro. E desta vez foi a última.

Montag, September 09, 2002

PALAVRAS

Ele parou. Estava precisando de um tempo para pensar. Na vida, nesse monte de coisas que acontecem. Sozinho. Já fazia muito tempo, inclusive. Sentou no banco molhado pela chuva que acabou de cair. Tudo recendia aos gritos esbaforidos das rãs frenéticas que conclamavam os poderes de São Pedro. E no meio daquele silêncio, ele se prostrou a olhar o mar. Perdido. Como há tempos já se acostumara a ser.

No campo de visão dele, apenas aquele borrão preto recortado em uma imensidão roxa. As noites de chuva adoram ter esse aspecto selvagem. Essa coisa incontrolada, silenciosa, sombria e fascinante. Parecia que tinha o poder de suga-lo daquela cidade, que espreitava maliciosamente nas suas costas, para um lugar além. Lá no meio das constelações e estrelas, no meio do tempo em que as coisas são eternamente felizes. Do ladinho da loja de doces. E essa droga cem por cento natural era a sua, só sua, saída.

Tendo ciência que não seria pego nunca em flagrante - a não ser se aquele conhecido olho de raio x viesse novamente, ainda naquela noite, surpreender seu olhar vago - pôs-se a pensar na vida. Algo que ele estava muito acostumado a fazer, diga-se de passagem. Andar livremente pelos segundos que caíam na imensidão dos seus olhos castanhos encima do monte do esquecimento. Permitiu-se ainda um breve meneio da cabeça, para ter algo no que se firmar. Escolheu a luz amarela do poste que mostrava o índice do armazém.

Uma letra somente. Um "P", bem grande. Logo começou a maquinar tão rapidamente como podia. Seria esse P algum sinal? Estava mesmo ali para pensar na vida ou para finalmente receber dos céus o roteiro dos próximos capítulos da sua existência miserável? Naquele momento daria tudo por uma garrafa de whisky, para que pudesse sentir-se solto. Como um dançarino. Para deslizar entre as coisas na sua cabeça e desviar das lembranças tristes com graça. E principalmente para esquecer que aquilo tudo tinha um sentido, uma razão de ser.

O pê de ponto. De preto. Predestinação. O pê que sempre esteve ali. Pelo menos no tempo em que aquele armazém existiu. Ou que alguém se fez capaz de ler aquela letra. Porque a letra, por si, não é nada sem um olho para admirá-la. E, se juntarmos ela com outra, aí precisaremos de mais coisas para tal feito. Por exemplo, circunstâncias. A palavra é a massa, que precisa do molho para ser melhor apreciada. E isso se dá pela interpretação. Isso se dá pelos suspiros, gritos, olhares e conjuntos. Isso de dá com a noite preta que se descortina pálida atrás do pavilhão "P".

Mais um trocadilho barato. Essas malditas palavras sempre foram a sua vida. E ninguém entendia. Nem mesmo o calmo mar que servia de mesa para aquele colóquio literato privado. As palavras que dão vida. Dão sentido. Mais ou menos como os pais, quando batizam os filhos. Quando escolhem entre vinte e seis quais os bocados que identificarão seus rebentos para sempre. Aquelas que serão índices dos seus pavilhões, construídos debaixo daquele mesmo céu, mesmo se não estivesse escuro ou chuvoso. E que voltariam, como o mesmo mar, a bater na praia dele. E seriam seus amigos, amores e desafetos.

Pegou uma concha no chão. Não era muito grande, não dava para ouvir o que ela dizia. Não era como aquelas que a vó dele tinha. Ela jurava que ele poderia ouvir o mar e lembrar da casa dela sempre que quisesse. Como se estivesse ali, depois daquela esquina. Audível, porém intangível. Ali mais acolá. Só que o seu atalho para os doces e os verões foi dizimado pela física, que impulsionou a pequena varinha mágica com uma aceleração de nove ponto oito meros por segundo ao quadrado da mesa retangular para o chão irregular. E esse monte de palavras fizeram ele conhecer mais uma: distância.

Depois daquilo sua avó faleceu. Ele ficou muito triste, pensou que poderia ter ouvido com aquele finado aparato mágico a vó dele gritar, mais alto que as ondas do mar, que ele viesse salvá-la daquele monstro. E ele poderia, pois, afinal de contas, tinha o atalho, e podia levar os médicos para virar aquela esquina e chegar na casa. Salvar as suas lembranças. Ser útil. Ele lutou com toda a força, mas teve que aceitar o mais novo filho das suas entranhas machucadas: a saudade.

Tempos depois ele descobriu que aquilo tudo era ilusão. Mentiras. Tudo pode fazer aquele barulho parecido com o do mar. Uma xícara, as mãos em concha, um tapa no ouvido, encher as orelhas d'água. Tudo trazia a impressão que ele estava lá. Tanto que agora, de fato na frente do mar, não tinha certeza se estava lá. Podia estar dormindo, no seu travesseiro, com a mão sobre seu canal auditivo. Tirou os sapatos e deixou seu corpo mover até as pequenas ondas que se descabelavam na orla noturna.

Aquelas duas palavrinhas seriam as suas principais tristezas pelo resto da vida. Até aquele dia. Onde o mar brincava no meio dos seus dedos. E aquele pê ainda mostrava que as palavras estavam vivas, ali, com ele. E viu que esse era o grande inconveniente de crescer. Quando se aprende a ler, a única maneira de não saber o que quer dizer aquela frase na parede, é fechando os olhos. Desdobrando as letras. Transformando-as em códigos normândicos, sânscritos, qualquer coisa que seus neurônios não interpretassem. E era esse o motivo da gana que sentia pelas palavras estrangeiras.

Dede pequeno gostava de ouvir as palavras inteligíveis do rádio. Aquelas coisas que mais parecem um bêbado, ou alguém fazendo gargarejo. Esse interesse levou ele a querer saber o que estavam dizendo. Fez ele aprender inglês, alemão, francês. Interpretar os bêbados. Ouvir o que eles tinham para contar. E ouvir como a vida deles era desgraçada. Como as mulheres iam e vinham. Como as drogas dopavam. Como eram simples as formas do amor. E como era incompreensível o seu significado. Mesmo para quem sabia se comunicar com mais de oitenta por cento da população.

Cantarolou uma música antiga. Em inglês. E lembrou, então, de quando aquela menina veio fazer o teste. Foi na praia. Na casa da vó. Perto do mar. Estava tocando aquela música no radinho de pilha que ele tinha pego emprestado do vô. Ela pegou uma folha do diário dela e uma caneta. Eles estavam sentados na areia. A praia estava deserta, era frio. Mas o sol brilhava. E eles estavam lá, no cantinho deles. Ela perguntou nomes de meninas, nomes de animais, números. E na sua aritmética inocente deu todos os caminhos do futuro dele. Os filhos, onde moraria. E com quem casaria. Depois daquele dia eles não se viram mais. A mãe dela fugiu com o amante, levando a filha junto. Mas já estava feito. O futuro dele estava traçado.

Ele olhou novamente para o "P". Dar nome é fácil. O que voa é ave, o que flui é fluído. O céu, o sol, o mar. Tudo tem um nome que alguém inventou. Até o cangurú. E ele também inventou um, dezoito anos atrás, sentado na areia. Patrícia. Ele não conhecia nenhuma garota com esse nome. Só que ele disse, para completar o joguinho. E sua amiguinha revelou que ela seria sua companheira. Aquela pessoa que ele inventou.

A praga de se criar palavras é não vir a saber nunca qual é o seu real significado. Inventando um nome ele mentiu. Da mesma forma que quando lhe disseram que a concha era um atalho. Um refúgio. Mentira. Como quando disseram para ele que podia parar se quisesse. Da mesma maneira deslavada que repetem por aí "para sempre". Tal qual quando ele teve que dizer para si mesmo que fugir era o melhor meio. Do mesmo modo que ele tinha feito horas antes, quando disse que também amava.

Praguejou os gregos, os latinos e os fenícios. Daquele cuneiforme nasceu a sua mentira. Das pinturas rupestres o signo da sua ruína. Naquele monte de estrangeirismos, no meio do roxo do céu e do preto da água, sob seus pés naquele momento mesmo, estava o sentido da vida dele. E ele não sabia mais ler. Ele não era mais ingênuo o suficiente para entender que aquele mundo era apenas bêbado e engraçado, e que tudo eram apenas maneirismos importados.

Ele só queria entender. Ter um sentido na vida. Batizar a sua sina. E poder chamar o amor pelo seu próprio nome. Só que naquele momento começou a chover.

Freitag, August 30, 2002

BOLINAÇÃO VIRTUAL

Espera um e-mail, faz um tempão. Precisa ler aquelas palavras. E, por mais idiota que possa parecer, de alguém que ele nunca viu, nem sentiu o cheiro, nem olhou nos olhos, nem tremeu por. Está virtualmente apaixonado por todas as virtudes que afloraram da tela. Emoldurou com uma personalidade aquela pessoa que sempre existiu dentro do seu suboconsciente. Consegue agora sentir que no seu monitor é ela, a pequena Cassandra, que parecia viver só dentro dele que externou em algum ponto setecentos quilômetros longe. E agora aquela barrinha de status do Outlook faz um charme do caramba, como se dissesse "espera sentado, que tua conexão é de 14400..."

Já não conseguia dormir direito pensando em tantas as qualidades repartidas, todas as coisas que fecham e os gostos, tudo. Nunca tinha achado algo dessa maneira. Todas as mensagens pareciam conter coisas escritas nas entrelinhas. Ele mesmo encontrou trezentas e noventa e cinco maneiras de interpretar as letras. Inclusive os estilos de fonte. O coração trepidava enquanto cada palavra era degustada. Sem dúvida, era amor.

Chegou finalmente o e-mail. Nele tinha um número de telefone e uma daquelas carinhas de dois pontos, parênteses e sinal de igual. E junto duas palavrinhas: me liga. Como assim me liga? Naquele momento tudo começou a rodar, a cabeça dele, o computador, o e-mail e até mesmo os ponteiros do relógio. Como ela pode? O lance legal, a virtualidade do relacionamento, as bolinações mentais, tudo harmagedonizado com um mail bomba que queria que as coisas passassem para o analógico.

Doeu muito, mas ele apagou aquele nome da mail list. E suspirou o negro futuro solitário que o esperava.

Donnerstag, August 29, 2002

CAÇA

Eu estava sentado, como de costume, lendo meu livro predileto. Na mesa de sempre. Com meu café irlandês de sempre. Quando de repente, não mais que de repente, surge um vulto no meu campo de visão periférica. Meu sentido olfativo logo disparou o sinal ao meu cérebro: indivíduo do sexo feminino próximo. Ergui minhas pupilas que brincavam nas letras e tive a confirmação. Ela pediu para sentar. Óbvio, não neguei.

Estava bela naquela noite. Não tanto pelo seu rosto, que eu por sinal já conhecia, mas mais pelo olhar. Tinha alguma certeza naqueles meneios auriculares, como uma gueparda veloz mirando um búfalo. Ela sorriu, e aí me dei conta das alusões absurdas por onde deixei minha mente ir. Falou algo como um "e as coisas, como estão?", o que me fez chamar as pupilas - que agora brincavam nas curvas dela - devolta. Sorri meio sem jeito, como se ela pudesse adivinhar o que eu estava fazendo amparado pelo meu silêncio contemplativo.

A partir daquele momento, engatamos uma conversa fluente. Já nos conhecíamos, embora parecesse que nunca tivéssemos nos falado, tamanha curiosidade que ela tinha sobre as minhas coisas. Passamos por zodíaco, festas, vícios, e um monte de outras coisas mais mundanas e sensoriais. Estávamos para engatar em assuntos mais diretamente sensuais quando chegou um amigo meu. Engajou-se também no assunto, me dando suaves "empurrões verbais". Aproveitei a brecha para terminar meu café.

Em cinco minutos, mais onze amigos meus já tinham chegado na mesa, e começavam uma maratona de feitos heróicos. Eu particularmente não sabia conviver com tantos altruístas, tantos puritanos, tanta gente de bem e feliz da vida, com tantas namoradas desatenciosas e acima de tudo, tantos amigos carentes. O que se seguiu foi uma complacência tremenda da nossa anfitriã, que pode começar a sua seleção de pretendentes. Muito fraco, muito bonzão, muito feio... e as atenções se fechavam em torno de uma ou duas pessoas, num afunilamento bastante claro.

Eu ainda estava tomando o meu café, e fazendo um esforço tremendo para que ele não terminasse antes do final do show. Aproveitei o fato de ter sido usado de isca (ou de ter sido eliminado antes da primeira fase) para ficar observando. E começou a sessão dos podres. De uma hora para outra, todos queriam se desmascarar. Parecia um baile do cabide veneziano. "Lembra daquele porre Fulano? Ah, não tem como, tu bebeu tanto que não lembra de nada", "E aquela alemoazinha que tu tava comendo, Cicrano?" e por aí afora.

Ela ria de satisfação. Eles se degladiavam. Ela sentia seu trabalho facilitado. Eles faziam papel de otários. E eu vendo tudo. Com certeza, no outro dia, se reuniriam todos para conversar sobre as técnicas utilizadas na noite anterior, os acertos e erros, e os tratados éticos e técnicos para a próxima caça em conjunto. Tratado búfalo para caça de guepardas. Tudo isso é efeito da seleção natural. Ou somente culpa da primavera.

No final, eu estava certo com a minha alusão. Ela era sim uma gueparda caçando.
CUIDADO, FRÁGIL.

Deformação. Aprendi na escola que os corpos tem limites de deformação. Por exemplo, se submetemos uma placa de aço a uma determinada carga, ela tem a tendência de fletir (entortar), voltando ao seu estado inicial depois de cessada a ação da mesma. Chamamos isso de deformação elástica, por motivos óbvios. Só que, dependendo da força que aplicamos, ela entorta e não volta mais ao seu formato. Obviamente, isso tem influência direta da força, que é maior que a primeira. Nesse caso, venceu-se o limite da deformação elástica, ocorrendo uma deformação plástica, irreversível.

Além da força, temos também a natureza do material como fator importante no comportamento deformatório. Alguns materiais tem um limite de deformação menor que os outros. Como por exemplo, o vidro e o cobre. O primeiro é quebrado facilmente quando submetido ao impacto, o que não ocorre com o último. Isso significa que ao invés de fletir, o vidro quebra quando exposto a uma força. A isso damos o nome de tenacidade, a capacidade de absorver impactos sem rompimento do material. E a capacidade de dobrar quando submetido a uma força é a maleabilidade.

Essa pequena explamação me disse muita coisa. Como por exemplo, como as pessoas se comportam. Principalmente as padronagens humanas gélidas. Fácil analogia. O gelo não é muito tenaz, quebra facilmente quando se choca com algo. Não é maleável, porque não dobra com facilidade. Ou seja, seu limite de deformação plástica é muito pequeno. Então, não faça força, você vai quebrá-la, ou machucá-la. Lembre-se sempre que a água assume a forma que lhe derem.

Aqueça os seres de gelo. Essa é a melhor saída.

Mittwoch, August 28, 2002

DESTINO

Destino. Esse grandecíssimo filho de uma cadela. Ele apronta das dele sempre.

Envolto em mais um dia desses sem nada para fazer, passei mais esse que vivi hoje. Isso até as cinco e trinta da tarde, quando as coisas mudaram. Estava eu correndo pela casa a cata das minhas coisas que nunca estão onde eu queria que estivesse, e conversando com o meu irmão, quando o telefone tocou. Ele atendeu. Era para mim. Uma voz diferente do outro lado. Eu já sabia quem era. Na realidade estava esperando por aquele telefonema desde domingo. Eu tinha uma espécie de necessidade de ouvir aquela voz. Por mais estranho que pareça, como já concordamos anteriormente.

Bem, o fato é que o telefone tocou e ela estava do outro lado da linha. Ou da fibra ótica, afinal estamos bem modernos hoje. E, para grandes distâncias, nada melhor que tecnologia. Ela encurta limites. E eu de tempo curto. Ainda precisava colocar o carro para andar meus trinta quilômetros de congestionamento. Aula de estatística. "Bah, agora infelizmente não dá. Tu me pegou de saída. Se tu puder, liga amanhã, perto das duas. Daí a gente tem mais tempo". Maldito tempo. Mesmo sem eu estar trabalhando, ainda escorre pelos meus dedos quando eu mais preciso. Fui seguir a minha sina.

Aula. Recebi a minha prova. Fui bem. A professora começa a dar uma pequena explanaçãozinha sobre as questões. Só que uma delas eu não engoli. Pedi explicação. Ela se esquivou. Insisti. Ela disse que estava errado. Eu disse que não estava. Ela insistiu. Eu insisti. Ela voltou a encorrer no erro. E eu falei que aquilo era física de primeiro grau, simples e lógica. Ela ficou puta. Quando ela me chamou de "meu anjo" na frente da turma toda, eu fiquei puto. Ela deixou o sangue fugir para a cabeça. Eu já parecia um termômetro invertido. Ela continuou batendo na mesma tecla. Eu desisti. Peguei minhas coisas para ir embora. Minha amiga disse que não valia a pena. A professora disse que eu podia sair, que ela não tava nem aí. Daí eu fiquei mais puto. Quando eu saía pela porta ela ainda resmungou algo que eu não entendi e eu respondi algo que não me lembro. Nisso transcorreram-se cinco minutos.

Com medo de ganhar meia ou uma hora, sei lá eu, em boa e distante companhia, perdi cinco minutos da minha vida com gente ignorante. Aprendi a lição. Liga pra mim a hora que quiser, vou arrumar tempo para todas as coisas que eu achar importante. Nem que tenham esse rótulo apenas por dois ou três dias. Vou ser mais instintivo. Vou ser mais humano. E isso não é uma jura de final de ano.

Nunca mais brigo com Chronos e Fortuna. Lhes peço perdão.

Mittwoch, August 21, 2002

JOYCEANAS

Ele estava ofegante. Mas conseguiu se esgueirar entre os urbanos e sentar em frente ao balcão. Tinha a boca seca e o coração a mil. E não queria mais pensar no assunto. Pediu ao garçon um meio uísque malte. Nunca conseguia tomar um puro quando estava desestabilizado mentalmente. Tirou o chapéu alto que trazia, deixando sobre o banco ao lado. Vestia bela casaca riscada, azul escura, com sapatos pretos verniz. Tomou em suas mãos seu relógio e viu que eram vinte e três para as onze. Logo deveria voltar para casa, e quem sabe terminar o que começara.

As pessoas que entravam e saíam do bar eram barulhentas, e, talvez, nem tinham notado a existência dele. Estava quieto e era dissonante, por isso, no ambiente. Porém, depois da terceira rodada de meios uísques, as coisas tornaram-se melhores. Até teceu coragem de observar as pessoas do lugar. Viu, primeiro, o garçon. Cara redonda com óculos fundos, pele avermelhada. Olhos sujos. E isso o impediu de se deter mais na interpelação visual. Voltou a contemplar o fundo do copo, retirando mais dois xelins para o pagamento da próxima dose.

Duas mesas adiante, seus olhos atingiram uma jovem. Ela estava muito bonita. Usava sua roupa de final de semana, com belas luvas negras, um chapéu e uma echarpe que era amarrada sob seu pescoço. Estava sozinha, parecendo esperar alguém. E trazia ares de tristeza profunda. Num descuido seu, deixou seus olhos se cruzarem e neles pousar. E foi então que ele percebeu que ela tinha olhos de vaca.

Todos conhecem, ou já viram pelo menos, pessoas com cara de vaca. Previlégio não apenas das mulheres, muitos homens tem esse aspecto. Parecem com aquelas maravilhosas holandesas dos comerciais de laticínios que aparecem no final, quando o jingle está quase finalizado, e culminam num mu gracioso, mas impessoal. Uma interjeição perdida, como se as câmeras não estivessem ali, nem mesmo as pessoas ou os saquinhos de leite. Como se nada além do seu doce e inerte campo estivessem atravessando seu campo de visão. Um olhar sem fundo, de puro olhar, sem intenções nem destinos. Algo que nem precisava estar ali, não conta ponto algum, mas está simplesmente por ser fisicamente impossível arrancar os globos oculares e guardar em uma caixinha por um momento. Inúteis, vagos e ao mesmo tempo inocentes. Imprecisos.

Foi interrompido de seus pensamentos por um sorriso bovino. A menina tinha dentes, e belos, retos, brancos. Otimamente emoldurados por uma boca avermelhada e sumarenta. Ela continuava olhando do mesmo jeito, mesmo sendo desmentida por seu órgão falador. E deixou cair no chão o lenço.

Donnerstag, August 08, 2002

THE THIN THING THINKER

I feel a thing
I have a think
it's a thin think
for a few thing

But, however, it's something
and I like to think
a piece of thing
about thin things

The think is a thing
but is anything
maybe a think is something
for me is everything

I think about the thin things
thin think for a thing
a thin part of a think
I think a thing.

And anything for something was everything.

Mittwoch, August 07, 2002

SONHOS E FAZ DE CONTA

O silêncio da tua voz iluminou o ar em lampejos de glória. E todo o sempre se tornou segundo no meu passado repleto e formidável. Os suspiros e os olhares seguiram cálidos e fluídicos, em sentidos descentrados. A maior parte da dor ficou nos olhos de quem não viu e nos sons surdos emanados pelos sinos de cristal gélido que soavam ao fundo. Em segundos o que era mundo converteu-se em plano e o ano caiu em sono profundo. Depois disso nunca mais se ouviu de nós dois, quer neste mundo ou n'outro.
CAMINHO DAS COISAS

Ambíguo,
Eu e meu umbigo
na estrada que sigo.

Singelo,
singe o martelo
que sanciona ao cutelo.

E eu dormindo
ainda é domingo.
Pronde o mundo está indo?
GESTAÇÃO MUTALÍSTICA

Serve ao
Verme da
Derme do
Germe da
Serpe.

Freitag, August 02, 2002

CONTOS DA INFÂNCIA

Lembro agora dos idos tempos da quarta série do primário. Eu estudava em uma escolinha pequena, na minha cidade natal. Tão pequena que não oferecia o ensino completo até a oitava série. Era, portanto, uma escola de primeiro grau incompleto. Lá comia-se arroz com proteína, de soja, que era servido em canecas azuis. Era pavoroso para mim, mas muito bom para as pessoinhas que iam ter que chegar em casa e ainda dividir um almoço mirrado com seis ou sete irmãos. Lá tive minhas primeiras experiências como goleiro de futebol e líder estudantil frustrado. E tive contato com meu primeiro livro, na segunda série, o Confissão do Minotauro.

Mas esses tempos que quero recordar são outros. Época de festividades da revolução farroupilha, a semana de vinte de setembro. Estávamos em gincana. Minha turma era a mais velha da escola, e os "formandos" tinham que fazer uma grande apresentação. A semana inteira de tarefas, os colegas todos empenhados em dar o melhor de si. Trabalhando no intuito de dar a nós mesmos o gosto de uma última vitória antes de sair. Olhando para o mesmo ponto, juntos.

Até que surgiu um imprevisto. A escolha do nome da equipe. Existia uma grave e acirrada disputa em torno de dois nomes. O primeiro, Equipe Lua de Cristal, era defendido por todas as meninas - e um garoto afeminado - da minha sala. Os garotos estavam irredutíveis quanto ao nome Equipe Super Máquina, prontos para a briga. E eu queria Equipe Nico. Mas ninguém me deu ouvidos. Estava sendo regeitado na minha maior oportunidade de liderança da época. E a ditadura se instaurou na resolução do impasse. A professora escolheu três momes mais adultos, com a adoção do nome Equipe Rio-Grandense. Em solidariedade fiz a música da equipe, cantada por mim mesmo e outros dois colegas, na cerimônia de encerramento da gincana. Eu tinha dez anos e escrevi isso:

Nós temos a garra Rio Grandense
que buscamos nas coxilhas e planaltos
e viemos p'ra cidade canoense
para ganhar a glória em grandes saltos

Vamos vir à galope
e vamos botar para quebrar
com tudo o que temos em mente
vamos entrar para ganhar

Esse povo Rio Grandense
tem a garra e o esforço da terra
e mesmo no caminho dos campos
isso é melhor do que a guerra

Vamos vir à galope
e vamos botar para quebrar
com tudo o que temos em mente
vamos entrar para ganhar


A censura ditatorial da minha professora resolveu mudar onde se lê povo por equipe. E eu não gostei da última rima. Mas foi ao ar mesmo assim. Estava inaugurada a minha síndrome de poeta.

Mittwoch, Juli 31, 2002

AUTO ANÁLISE

Me mandaram um e-mail. O nome é auto análise. Desses html, onde vem perguntas e tu responde com letras. Provavelmente trazido de alguma antiga civilização bárbara que costumava fazer levantes em cidades grandes após dedicar cerimônias homéricas a seus deuses. E uma delas deveria ser a adivinhação. Claro que esse conceito, que deveria ser apenas uma arma guerreira, acabou sendo transformado em remédio para solteironas, resposta para os deprimidos e esperança para os jogadores. E perduraram até os meios eletrônicos, sobrevivendo a tudo e todos e entrando na minha caixa postal.

Existe algo de muito difícil para mim nesses e-mails. Além de tratar semrpe das mesmas coisas, sempre dão as mesmas respostas. Nesse caso, a primeira pergunta era qual meu animal favorito. Por que nunca escolhem o tamanduá bandeira, o urubú rei ou o dingo australiano? Opções ortodoxas apareceram na tela, como gato, pássaro e cahorro. Entre eles, gosto dos canídeos. Os felinos são muito dominadores. E pássaros são muito cagões (em todos os sentidos). Os canídeos são divertidos e procuram sempre alegrar a gente de alguma forma. Mas tem que ser um de grande porte, os pintchers, por exemplo, são muito barulhentos e espoletas. Um saco.

Como todo o bom teste, foi me perguntado a cor predileta. O que me fez lembrar Monthy Phyton and The Holly Cup, onde um dos cavaleiros da távola esqueceu qual era sua cor preferida e foi arremessado ao abismo. As cores escolhidas são rosa, branco e preto. Não que eu tenha algum preconceito, mas rosa não combina com as minhas saias. Branco suja muito. Sobrou o preto. E eu que nem sou panque nem nada.

Depois nomes de pessoas, mesmo sexo e sexo oposto. Pressenti no momento o que queriam. O nome da pessoa do mesmo sexo ia ser o meu melhor amigo, o do sexo oposto, meu grande amor. O primeiro sempre varia de teste para teste. Eu não consigo escolher quem vai ser meu melhor amigo. Coloquei alguém importante hoje e segui. Mas acho preconceito, minha melhor amiga é mulher (aplausos!). E eu poderia ser apaixonado por um homem, quem sabe? Mas como se trata de uma tradição celta, provavelmente, coloquei o nome padrão do campo feminino e segui.

Parti para o chavão da seqüência: montanha ou praia. Eu queria uma casa na montanha, na beira da praia. Como em Santa Catarina. Mas só que a praia tinha que proporcionar um lindo por do sol, como as praias pacíficas. As atlânticas apresentam apenas seus amanheceres que eternamente gritarão para mim "vai dormir, vagabundo, sai da noite!". Resposta para essa, alternativa M, de montanhas. E na próxima, que pergunta amanhecer ou anoitecer, fico com o anoitecer, pelos motivos citados acima.

Ainda perguntam se eu prefiro rosas, samambaias ou plantas artificiais. Eu prefiro rosas. São muito belas, em suas roseiras, molhadas de sereno. E, de quebra, vem ainda uma questão sobre estações do ano. Eu sou maníaco por inverno, meu nariz cheio de coriza, muitos edredons e aquele frio desgraçado que aumenta a gravidade em torno da cama. Sou masoquista, nas horas vagas. Só para citar.

Para finalizar, um número. É óbvio que eu tenho que fazer o favor para meus netos de não deixar essa corrente morrer. Assim, o deus gaulês para quem essa corrente foi dedicada pede para que distribua, como uma troca de favores, camaradagem. Ou faz, ou fica sem teus pedidos, que é o que se pergunta a seguir. Nunca peço nada, para não ter maneira de decepcionar a divindade. Mas fazer o quê, nunca me ocorre nada mesmo.

Bom, minha auto análise disse tudo que eu já sabia. Então, renomeei como "Consultoria Sentimental" e encaminhei para meus amigos.

Sonntag, Juli 21, 2002

Sabe que nunca te esqueci. Só tenho medo de que tenha esmorecido aquilo que um dia eu senti. Talvez não exista mais um tempo que possamos conjugar em primeira pessoa do plural. Pode ser que não exista mais uma constelação que brilhe ao teu sorriso. Eu tenho quase certeza que vivo demais do passado, num vai e vem frenético de coisas que perderam o sentido em alguma distração do cronômetro. Quero que o brilho dos momentos sejam eternos, mas acabo esquecendo que tenho o hoje para viver. E não dá para viver o hoje mais do que vinte e quatro horas, senão ele vira amanhã e volto a viver de passado.

Um dia pensamos em inventar um botãozinho para desligar o mundo ao nosso redor. Acho que eu deveria ter passado mais tempo não me preocupando em te ter pelo tempo que fosse, mas sim de uma maneira plena e constante. Tenho milhões de motivos para pedir perdão e muitas coisas entaladas na minha garganta. Não devia ter te feito perfeita nos meus pensamentos, tinha que ter olhado para os teus erros. Ambos esquecemos que não existe ninguém igual.


Chorei, esses dias. Pelos dias que segurei minhas lágrimas. Foi doce.
UMA EM MIL

Ele era andarilho. Por opção, diga-se de passagem. Filho de reis, mas numa crise psicológica. Resolveu trilhar o caminho asceta por uns tempos. Definiriam os filósofos como crise de meia idade antiga, quando os menininhos mimados queriam achar motivos para continuar vivendo. Tinha acontecido a mesma coisa com Buda. Ainda bem que Freud não tinha nascido naquele tempo. Oi será que suas teorias fálicas teriam sentido mesmo nesses casos?

O terreno árido da arábia era algo inconstante. De dia quente, de noite gélido. Mais ou menos como aquelas garotas dos comerciais de tele-sexo. Pelo menos deve ser. E esqueça essa idéia de processos, estamos no oriente médio antes de Maomé ou usurários. Nada era crime, e a grande novidade tecnológica era o DIU. Testado em camelas de laboratório, inclusive.

Depois de uns tantos dias de caminhadas, o jovem resolve atalhar. Não pergunte como atalhar no meio de um monte de dunas iguais, mas asnos falam em todos os idiomas. O fato é que ele tropeçou. E, caído, oulhou para trás. Viu no chão uma daquelas lâmpadas de óleo de baleia, antigas, para iluminar residências. Não tinha nenhuma baleia por ali, isso era certo. Não via casa. Mas ela estava ali. Brilhando. Milagrosamente. Ele pegou, cheirou, olhou e guardou na sua sacolinha.

Finalmente durante a noite chegou em um vilarejo. E nesse lugar tinha uma bodega, ou sei lá o nome que davam àquilo naquele tempo. Viajantes, gentes libidinosas, propostas lascivas... e uma mesa de apostas. Como sempre. O fato é que - tirando as mulheres - os jogos eram a atração principal. E atraíram o jovem andarilho. Era um tipo de jogo do osso, onde o lado escuro ganha e o claro perde. Jogado com a rótula do joelho de um camelo. No caso eram combinações, seis ossinhos atirados por um e seis pelo outro. Quem perdesse menos na jogada ganhava. Ou quem ganhasse menos perdia. Seja lá como for, não tinha diferença nenhuma.

Havia um homem grande e de barbas (mentalize aí um árabe padrão dos filmes americanos) que estava ganhando tudo. Deixava todo mundo liso. Gabava-se de uma técnica que usava. E no meio de uma das suas falastrices foi interrompido.

- Não existe nada de mágina. É apenas probabilidade. Você deixa suas apostas mais baixas quando tem menor probabilidade de ganhar.

- Ah, é espertinho? Da onde tirou esta idéia?

- Da universidade. Me explicaram tudo lá. Sou engenheiro.

(Não vem me perguntar de Sócrates, Platão, e outros. Senta e escuta a história.)

- Universiade... Como te chamas, engenheirozinho de araque?

- Aladin.

- Bom, queres comprovar essa tua teoria?

- Com prazer.

E se puseram a jogar. Aladin ganhou várias. Fazia apostas magras quando perdia. Coincidentemente. Ou não, como ele sempre frisava. Tudo questão de probabilidade. Até que a um momento, o velho apostou apenas uma moeda. Aladin casou a sua moeda com a dele, mais tudo o que tinha, mas só atiraria a sua moeda se o velho cobrisse a aposta.

- Não tenho dinheiro.

- Tem terrenos? Qualquer coisa? Aceito a aposta.

- Tudo bem. Atire.

Depois que ambos jogaram, Aladin não pode acreditar. Depois de tantos cálculos, a matemáquina que ainda nem tinha nascido já tinha dado uma rasteira nele. A certeza do cálculo correto, mas a resposta errada. O velho sorriu, ajeitou o turbante na cabeça e recolheu tudo. Aladin se desesperou:

- Escuta, não posso voltar para casa sem nada... Vamos apostar mais uma! Eu aposto a minha lâmpada!

O velho olhou, apalpou, cheirou e disse:

- Sei não. É muito velha. Fazemos assim: eu aceito a aposta, mas eu caso a minha filha Xarezade. E aí? Topa?

- Tua filha?

- É, cansei dela, ela vive contando histórias. E aí, vai ou não?

Aladin olhou, apalpou, cheirou e disse:

- Melhor que camela. Tá apostado.

Depois disso a lâmpada iluminou por muito tempo a casa do grande sultão. Ele deu a sua filha para um rei maníaco que matava esposas, para poder se livrar dela.

E Aladin perdeu o seu bem mais precioso, mesmo sem saber.

Donnerstag, Juli 18, 2002

THE FIFTEEN MINUTES STORY

Tenho quinze minutos para contar uma história. Pode ser da vida de um nêutron desgarrado. Não sei se alguém consegue imaginar o impacto dessa minha frase. Um Nêutron longe do núcleo. Desestabilidade molecular. Isso deve ter acontecido em algum lugar da minha massa celular. E como é uma reação de fissão nuclear, deve ter distribuido uma carga monstruosa de energia desestabilzando todo o conjunto. Como uma Hiroshima interna. E não sei dizer quem foram os Estados Unidos que me atacaram, embora possa suspeitar. Aí culpo meu talibã e invado a tua Chechênia. Tudo em nome da minha liberdade de ir e vir nos meus recantos.

De qualquer maneira, não importa quanto as redes internacionais implorem. Vou destruir a todos. Principalmente quem desgarrou esse meu neutronzinho. Representa, provavelmente, todo o meu universo caótico rumando para aquele buraco negro que já sugou muitas gigantes vermelhas. E isso é massa pra caramba. Devia ser um glutão intergalático nefasto, cheio de volúpia comilona e vontade de me ferrar. Tudo por um pedaço de carne inútil que forra minha caixa craniana.

Mas o objetivo com certeza era outro. E todos os cânceres juntos não dariam conta do recado. Me destruir não é tarefa fácil, não tão simples quanto me construir. E não adianta juntar um monte de argumentos sólidos para fundir em mim, eu precipito tudo e tu tem que juntar denovo. Não é desse jeito. Não tem como ter sucesso. Ainda mais em réles quinze minutos.

Sonntag, Juli 14, 2002

A vida que me espere.
Ou eu me desespere.

Sonntag, Juli 07, 2002

Ela era linda. Ainda mais por não esquecer o i no meio de um beijo ou queijo.
NO VACANCY

O guarda falava:

- Não senhor, não leu a placa?

- Que palca? Juro que não tinha placa nenhuma!

- Pois sim. Você tem que entender que só porque essa vaga estava disponível, não quer dizer que seja sua. Está escrito "Reservada para Carros Oficiais". Por acaso seu carro é um desses?

Não teve jeito. A multa veio. E os pontos junto. Tudo porque, numa via movimentada onde todos os estacionamentos parecem lotados, surgiu na minha frente um oásis. Na verdade era uma vaga, mas para qualquer motorista faz sentido essa analogia. O carro coube como uma luva, em duas manobras, suave. Como se tivesse o nome previamente escrito, mensagem divina, talvez. Só que tinha uma plaquinha. Era para cinco minutinhos, ninguém ia ver. Quando voltei do caixa automático, estava sendo autoado.

Em casa, lendo a notificação, tive a impressão de já ter visto isso antes. Dèjavú. Embora eu nunca tivesse sido advertido monetáriamente no trênsito - fui sim buzinado, apitado e xingado, mas não multado. Falta leve, mas que macula o bolso principalmente na renovação do IPVA. Mas mesmo depois de toda essa divagação aquele sentimento estranho voltava. Como um filme do Schwarzeneger, onde tu passa o tempo todo achando que já viu aquela cena. Passei as horas que me restavam do dia assim, entre meus pensamentos, vendo o DOC sobre a mesa da sala.

Durante a noite veio a revelação. Talvez por ter passado muito tempo matutando em cima daquilo, mas veio claramente a origem da sensação. Num sonho dos que eu não me lembro, ainda por cima. Mas estava lá toda a verdade. Isso sempre aconteceu comigo. Seja num emprego, conversa, amizade ou pretensas paixões relâmpago. Os lugares sempre pareciam vagos, mas eu não via - ou fazia questão de não ver - a plaquinha. Maldito pedaço de lata.

Nesse ritmo desatinado, acabei levando muitas multas. Consegui ficar na vaga por mês ou dois, até apagar o nome do titular e escrever o meu no lugar por um tempo. Mas esse tipo de vaga é alugado, e só fica guardado para ti até expirar o contrato. Data esta sempre desconhecida da ao menos uma das partes contratantes - explicitamente eu. Até hoje muita gasolina queimada, muita marcha cambiada, e nada de uma vaga segura, sem parquímetros e policiais, na sombra, para eu descançar o burro.

Definitivamente eu vou fazer um puxadinho. Acho que é isso que os americanos querem dizer com "self-made man".

Samstag, Juli 06, 2002

Assuntos internos:

Separei as coisas por aqui. Deste dia em diante, deixo meus textos aqui - óbvio, com suas futuras atualizações - e coloco meus posts na Privada, meu novo posto de depreciação humanitária.

Seguimos agora com a nossa programação normal.

Sonntag, Juni 30, 2002

MENSAGEM SUBLIMINAR

Paul está morto. É o que um monte de gente insiste em dizer que significam as capas dos vinis dos Beatles desde o Sgt. Pepper.... Mãos que aparecem sobre a cabeça dele, em uma delas. Na outra um suposto equívoco do dublê que esqueceu que era canhoto e fumou cigarro com a mão direita. Um monte de provas irrefutáveis de mensagens sifradas nas letras de Lennon, como um "Com'on dead men" se você tocar a faixa a trinta RPM, de trás para frente e ouvir de cabeça para baixo, tomando coca cola e dizendo o mantra sagrado de vigituriana. E usar um pouquinho da imaginação. Esse é o mundo das mensagens subliminares.

Diz-se de uma mensagem subliminar algo que se diz nas entrelinhas de coisas utilizadas na comunicação de massa para divulgar alguma idéia e fazer o escravo midiático aprender. Como um cachorro adestrado. Dizem que os filmes de Disney estão cheios de mensagens satãnicas, como uma passagem de um que eu não me lembro onde o gato da personagem principal é chamado satã. E a menina abre a porta da casa e pede para satã entrar na casa. Eu não devia ter lido nada a esse respeito, sério. A minha vida seria muito mais simples agora. Eu não perderia o meu sono pensando no que o Fred Flinstone realmente queria dizer com seu "yabadabadoo".

Estou tão desconfiado que acho que encontrei mais uma prova de que isso é verdade. Um carro. Lada. Eu dirigi um. Branco, não o vermelho, como todo mundo pensa. Modelo Laika. E existem coisas muito estranhas. A começar pelo nome. A primeira cadela a ir pro espaço, literalmente, foi batizada com esse nome. Em plena era de competições pela colonização sideral. Talvez seja um sinal. Algo como, se você comprou esse foguete, pode saber que seu dinheiro vai ter o mesmo destino da pobre canina. Seja como for, vou contar a minha experiência abordo da minha sputnik privada (por mais antagônico que isso possa parecer).

Primeiro a porta. Se você tentar abrir, vai fechar. Ou seja, o sentido do destravamento da porta é para a esquerda, numa clara alusão ao Comunismo. "A esquerda é que abre a porta, seu capitalista imbecil" é o que o carrinho parece dizer. Depois topamos com o banco. Logo que você se senta, vê que os bancos são muito duros. Isso numa clara demonstração de que não precisa de conforto, tem que calejar para chegar onde se quer. E que os bancos são coisas maléficas ao organismo humano (o que eu concordo).

No momento da partida, nota-se outra clara alusão ao regime: a ignição fica do lado esquerdo. Algo do tipo "à esquerda encontrarás a força que move você ao bem estar comum". Bocal da gasolina no lado direito, para dizer que quem suga o seu salário, na hora de abastecer, é a direita liberal, que nunca zela pelo seu dinheiro. Espelhos pequenos, para não deixar ver que na rua tem coisas melhores e mais bonitas que ele. Cintos de segurança bastante apertados, para não deixar que o condutor fuja. E um bom ar quente, porque na sibéria é frio pacas.

Mas eu gostei, vou ficar com ele. Além de não falar de nenhum morto, ainda combina com a minha boina vermelha. E quanto aos outros bólidos na estrada, sem preocupações, afinal... no pasarán!
A ORIGEM

Talvez uma das coisas mais marcantes da minha infância seja um fato inútil. Estive pensando isso enquanto assistia um filmezinho desses "C" hollywoodianos, com americanismos e coisa e tal. Tinha um carinha que estava passando por maus bocados, drogas pesadas, gângsters. Mas ele era o mocinho da história. Assim dá para ver o roteiro pré definido padrão americano se instaurando. Um dia ainda consigo mapear todos os tipos de filmes políticos camuflados que eu já vi. Sabe como são as coisas, até os demônios tem cara de árabes, com seus cavanhaques e tudo. Só que esse era um caso de superação pessoal e muita pancadaria.

Não sei bem o motivo, talvez para poder criticar, mas eu vi o filme todo. Perdi tempo de sono, mas pode ter valido a pena. Mesmo com aquelas seqüências esdrúxulas onde o mocinho escapa ileso a uma cortina de fogo de uma metralhadora. Isso porque dessa vez decidi ser crítico, e tentar bolar algo que psicologicamente justificasse tamanha carnificina. Óbvio, abandonando o chavão vencedor de vários óscares: a vingança. Principalmente nos anos oitenta, período de maior orfandade de aprendizes de ninjas da história conhecida. Sem contar os resgatados das guerras perdidas.

Seja como for, acabei encontrando algo que me fez pensar. Numa cena, o herói da história, em um momento pré-sexual com a atriz coadjuvante (nunca vi gordas de 180 kg num papel desses), cai ao humanismo e até mesmo parece chorar. Ele está contando para ela as coisas da sua infância árdua na cidade de Cu do Mundo. Fala de seus irmãos, seus avós e seus pais. Conta os sonhos deles. O pai, ex combatente do vietnã, queria que ele fosse médico. A mãe, escritor. Mas ele disse que aquilo estava em seu destino, ele não gostava de matar, mas era questão de honra, blá blá blá, bi bi bi. Momento ímpar.

Fiquei pensando. Vi naquele herói americano um fênix que renascia. Recebia os louros do sexo da virgem amada, quando renegou seus espíritos sanguinário e decidiu perdoar, mas depois de liquidar o chefão. E, numa análise rápida da minha vida, tracei paralelos. Eu também me sinto um vingador, que tenta agora perdoar os males da vida e seguir a carnificina até matar o chefão. Mesmo sem saber quem é o chefão. Mesmo sem ter medo. E principalmente sem ter uma musa para dedicar meus dias.

E, pensando novamente, acabei por descobrir, acho eu, o motivo de eu não saber contra que alvo atirar. Reside no fato que mais me chamou atenção naquela dramaticidade toda. O meu pai nunca me disse o que eu deveria ser. Nem mesmo minha mãe o fez. Pode residir aí a origem da minha dor incontida, o motivo da minha sanguinolência. Entende? Eu não tenho um modelo pré estabelecido para poder fugir e decidir o que eu não gosto. Ou apenas desobedecer e ter sucesso, como qualquer bom ator de hollywood.

Pode parecer estranho. E mesmo desculpa esfarrapada. Mas não é. Eu sei que poderia ter seguido a outra vertente criativa californiana, como a obrigação de seguir a profissão do pai. Mas ser caminhoneiro não é legal quando não se tem caminhão e ainda por cima, nem sabe dirigir uma coisa dessas. Eu podia ser do lar, como a minha mãe, mas acho que ia ser um tanto quanto abstrato. Ainda mais depois da lasanha que eu preparei hoje. Se eu tivesse ao menos uma área para fugir correndo eu teria hoje uma direção para seguir, um caminho. E meus pais me privaram disso.

Agora minha vida segue mais vazia que novela mexicana. Ah, se eles ouvissem o Curt Russel...

Donnerstag, Juni 27, 2002

ENTREVISTA COM O UNICÓRNIO ALADO

"O problema de ser um animal raro está exatamente nessa condição: ser um espécime pouco encontrado. As pessoas tem medo ou se escondem do novo, tentam arrumar alguma explicação", sentenciei. Já não era a primeira vez que tinha que responder aquelas perguntas, as respostas deixavam a minha boca quase no automático. Servi um copo de whisky. Beberiquei:"e caem nas armadilhas que fazem de todos 'iguais'. Por exemplo, a rotulogia. Se a pessoa não sabe do que se trata, rotula imediatamente. É como a menina comunicativa da escola, que tem mais amigos que amigas: Galinha. Mas não, ela é alguém que quer ser diferente, ou seja, alguém que não julga, tenta ser ela mesma não importando quem são os outros."

Ela parecia interessada no que eu dizia. Anotava molhando a ponta do lápis na língua, como os grandes escritores narravam. E eu olhava, lírico, deliciado com a cena, tentando montar um perfil primário daquele ente luminoso. "Outrossim (havia me tornado grave), existem indivíduos que fogem, como já comentei. Estes começam a dialogar por dois minutos e saem, para nunca mais chegarem perto. Aquela coisa da revelação. Quando o incomum se mostra, ocorre a renúncia da possibilidade. Como se no momento da remoção da presença do 'freak' do seu caminho retirasse também a possibilidade de existir algo tão ou mais diferente do que aquilo, levando o mundo como essa pessoa conheca à bancarrota." E seguia-se o ric ric do lápis.

Parei diante da janela e mirei a paisagem. O fosso de luz do prédio, um quadrado cheio de janelas que se espiavam curiosas na presença de alguém. "Existem também os incrédulos. Quando tu diz algo revelador da tua condição de aberração, caem urgentemente em modo 'defesa', tentando provar para todos que tu é normal. Procuram uma falha, uma incoerência para poderem atirar na tua cara que não é quem dizes, se utilizando de meios sujos e inimagináveis". Fiz brve pausa.

"De modo que", voltei finalmente, "é por estes que acabamos ostentando o escudo de mentirosos. Hipócritas. Não que não o sejamos, todo mundo é, mas somos os únicos de quem se vedam os direitos de negar. Falamos coisas que tecnicamente não fazemos, mas sentimos e admitimos. Isso é incomum aos olhos da maioria. Nos damos conta de que existe algo errado e agimos de modo a não permitir que isso ocorra na nossa vida. O que repugna é simplesmente riscado do vocabulário, das ações e das mentes. Mas erramos, e podemos cometer deslizes contraditórios. Mas como somos diferentes, não podemos errar."

E ela virou a página.
PENSE NISSO

Lógica. Isso é uma coisa que intriga muito os pensadores de todos os tempos. E principalmente a corrente neosófica que estuda as partes mais imperceptíveis da história. Como por exemplo a hípica asteca e o urbanismo cigano.

Esses estudiosos estão agora redescobrindo coisas que nunca foram descobertas. E fazem releituras de redundantes fato que aparentemente não tem nexo nenhum mais fazem parte das nossas vidas. Em escavações nas planícies nepalenses já encontraram milhares de restos fósseis de indivíduos primitivos interessantíssimos. Eles faziam uso das monções para o cultivo da cana de açúcar na região, sendo os primeiros indivíduos a circunavegarem a costa da mongólia.

E as grandes redes de tv não noticiam essas coisas.

Postado simultaneamente no Subsolo e no Entschuldigen....

Donnerstag, Juni 13, 2002

DATAS, ATOS & FATOS

Mandou o e-mail. No dia dos namorados. Estava escrito "Detesto o dia dos namorados". Ele escreveu e riu por horas. Lembrou de quando havia dito aquilo a cinco anos atrás. Era a primeira vez que conversavam. Tinha rolado aquele clima, havia aquela sinergia envolvendo eles. Como se fosse, naquele momento, sido proferida a senha que enlaçaria seus futuros. Pequeno nó de dois anos, é verdade, mas intensos. Não tanto quanto ele queria que fosse. Se, aliás, ele tivesse se preocupado menos com o tempo, poderia ainda ser rotina. Estava tarde, foi dormir.

Durante a noite lembrou de tudo o que havia acontecido. Os olhares, as caras e bocas. Lembrou das fotos que não tiraram juntos, dos beijos escondidos, os suspiros e abanos. Todos os atos conscientes e inconscientes. Os recados, e as entrelinhas... Polêmico. Havia um problema nas entrelinhas. As palavras. Tinha algo na cabeça dele que sempre funcionava difuso ao que ela pensava. Chegava a ser estranho. Com uma certa freqüência, durante a noite, gastavam um tempão discutindo sobre o que tinha se passado na semana. "Desculpe querida, quando eu disse isso era para ti entender aquilo..." Incompatibilidade esta que talvez tenha sido um dos motivos do final prematuro.

Esperou a resposta durante um mês. No segundo, pensou que eram problemas de conexão. No terceiro, mudança de endereço eletrônico. O quarto mês foi o do estrondoso lançamento de "Me entender é facil", seu primeiro e únco livro. Hoje ele é pingüim de geladeira.

Sonntag, Juni 09, 2002

TELEFONE

Telefone. Número. Ele está ali. Sentado. Ao lado do aparelho, com o número na mão. Tem um nome do lado, escrito com caneta bic. De punho próprio. Ligar, ou não ligar? Esse não era o dilema de Shakespeare, mas era o dele. Estava no ônibus quando recebeu aquele endereço celular. Uma menina incrível. Difícil achar alguém para conversar em uma hora de viagem de maneira tão agradável. Em uma ocasião não planejada, inclusive. Pegou a linha errada e desceu no final do intinerário. Tudo por uma boa conversa.

Aquela viagem era algo comum. Ficava na estação em frente ao hospital esperando a linha de sempre. Desta vez sozinho, sem os amigos que frequentemente se aglomeravam com ele nesse horário. Estava lendo um pedacinho de um livro de poesias. Quando viu, o ônibus parou em sua frente, com a porta aberta. Ele subiu, sentou. O cobrador era outro, o modelo do veículo também. Mas o texto estava tão macio e quentinho que ele resolveu nem se importar com isso. Deixou vago o lugar ao seu lado. Estava chovendo.

Cerca de um minuto depois, na outra parada, seu descanso literário foi interrompido por uma desconhecida que se avizinhou no banco. Ele moveu seus olhos para mirá-la. Teve um impacto. Tentou voltar às letras. Mas era inútil. Não conseguia ficar mais de dois segundos sem ter vontade de tornar a vê-la. As palavras da brochura em suas mãos não tinham mais nenhum sentido. Foi quando ela disse "eu adoro poesia, de quem é esse livro?".

Como se num sonho, conversaram alegremente. Não tinham quase nada em comum, o que rendeu muitos assuntos. Inclusive o destino dos dois era diferente - e a linha do ônibus. Embora ele não tivesse dado pistas de não ter prestado atenção ao nome da linha antes de subir no veículo. Mas nada de lamentos, a viagem estava ótima. E terminou numa troca de números. Telefone.

E agora ele ali. Sentado. E se ele ligasse e ela nem ligasse? Ainda mais com aquela mania de inventar trocadilhos sem graça. E se a conversa tivesse sido mantida apenas por casualidade? Poderia ser também que ela não se sentisse bem em viagens rodoviárias, e fazia aquilo em todas para evitar enjôo. Ele mesmo recorria ao Epocler de vez em quando. E se ela nem lembrasse do seu nome? Poderia dizer "oi, aqui é o fulano" e ela "quem?". Onde ficaria o ego do rapaz? Será melhor morrer na dúvida ou agir?

Pegou o telefone e discou. Dentro de vinte minutos estaria chegando sua pizza portuguesa. O resto ficaria para segunda.

Freitag, Juni 07, 2002

VAZIO VÁCUO

Todos os dias ele levantava da cama e agradecia por uma nova manhã. Até o dia que acabou a margarina. Nessa data fatídica ele endereçou um projétil para o centro dos seus miolos, deixando três reais em cima da mesa para que seus filhos providenciassem o miojo do almoço. Caiu inerte como um quadro de Dali, sem nenhum sentido aparente mais com todo o significado de uma vida. Foi capa do Notícias Populares da semana, do lado do horóscopo da Cida Hermenegilda. Um ótimo lugar para morrer.

Donnerstag, Juni 06, 2002

OCO

Estou oco.
Mas pera um pouco,
tá parecendo papo de louco!

Me deixa com meus momentos
Sozinho com meus tormentos
E te livro dos lamentos

Ou então vem cá depressa
Me queira bem à beça
E tira essa compressa

Deixa morrer o vazio
Me afoga no barrio
Quero nadar no teu rio

Antes que tudo faça sentido
Meu grito vire latido
E eu esqueça que tenho sofrido

Chega, mudar de página.

Freitag, Mai 31, 2002

PALEATIVO

- Tio, me dá um paliativozinho?

Fiquei olhando o gurizinho. Uns dez anos, todo sujo. Com uma roupa daquelas companheiras, que devia estar acompanhando ele há muito tempo, devido ao comprimento. Cabelo que não via um sabãozinho faz tempo. E disse aquilo. Paliativo? Daonde ele tirou isso?

- Como é que é?

- Um paliativozinho. Desses que tem um beija flor.

- Ah, tu quer é dinheiro.

- Eu também achava que era, mas um moço me disse que não é.

- Como assim?

- Eu falei pra ele pra me dá um real. Ele disse que não me daria um paliativo.

- Ah, bom. E ele explicou o motivo de ter disse isso?

- Não disse nada.

Coitado do garoto. Além de pobre acabou de ficar confuso. Quem será que disse isso? Possivelmente algum estudante de ciências sociais, ou política. Esses caras...

- Bem, o que ele quis dizer era que te dar um real é um paliativo. O que ele deveria fazer é lutar por toda e qualquer pessoa que viva na tua situação. Providenciar escolas, comida, condições de trabalho. Te dar dinheiro é errado, tu pode acabar gastando em drogas e coisa parecida. E aí? O que vai acabar acontecendo?

Ele me olhou. Parecia atônito. Claro, que cabeça a minha. Agora dei uma de burro, tentando explicar para alguém que nunca estudou um conceito difícil de ser aceito por muita gente. Aqueles que dão um real nos semáforos, cinquenta centavos no barzinho, o troco da passagem na descida do ônibus. Só estão aumentando as conseqüencias de atos não pensados. Mas, de qualquer jeito, aquele gurizinho não tinha nada a ver com aquilo. Fiz mensão de pegar a carteira quando ele falou:

- Mas escuta aqui tio, e o meu direito de consumidor?

- O quê?

- Eu sou um capitalista. Eu uso essa maneira para conseguir o meu dinheiro para consumir. Eu faço o meu papel social. Sustento as campanhas políticas de partidos de esquerda e ainda por cima funciono como aglutinante quando as pessoas querem se meter a sociais. Mas isso não é problema meu, é problema dos nossos governantes que se submetem a tudo o que o capital estrangeiro manda. É culpa do FMI, dos estados unidos, ingleses e muitos outros manipuladores de plantão.

- Uhm... Bem, eu...

- Tu eu não sei, mas eu quero meu real duma vez. Chega de perder tempo com quem ainda não tem opinião formada sobre assuntos tão importantes. E tenho ainda que passar em todas essas mesas.

Entreguei o dinheiro e fiquei pensando na vida. É boa essa vida de pedinte em bar de universidade. Pelo menos tu aprende a contra argumentar. Acho que resolvi meu problema de emprego.

Dienstag, Mai 28, 2002

MEU PAPEL NA SOCIEDADE

Vou me comunicar agora somente por bilhetes. Vou andar com um bloquinho de "Post-it" amarelo, outro vermelho e um branco. O amarelo para falar as coisas normais. Entrar numa loja, por exemplo. Escrevo um "Oi" simpático. Mostro para a atendente. "Quero um Mini-System", no post seqüente. Simples, rápido e prático. Posso até criar uma linha especial, tipografada, com frases padrões, tipo "Oi, como vai?" para simplificar as coisas. Respostas, frases típicas. O bom é que posso ensaiar esses meus diálogos em casa, criando uma malha de perguntas e respostas.

No caso de não ser uma situação corriqueira, como a supra citada, lanço mão do meu bloco branco. Esse serve para a cantada, a conversa fora de ocasião. Fatalmente escrita a caneta em punho próprio, mesmo em se tratando de uma cantada já conhecida. Sabe como é, tem que dar aquela impressão que é a luz da lua que inspirou aquelas palavras, e não algum filme antigo. Serve também para uma apresentação informal a um transuente qualquer para perguntar a direção de alguma rua ou logradouro. Cola no vidro do ônibus para perguntar "Passa na Osvaldo?". Branco, algo muito clean. Para situações de mesmo teor.

Já se for uma discussão, uso o meu bloco vermelho. É esse que eu uso para mandar pra puta que pariu, xingar a mãe e a décima quinta geração da família do taxista que me cortou a frente, do cara que pisou no meu calo, da guria que me deu um fora. Muito útil, também pode ser padronizado com frases pré setadas, como o popular "Vai pastar!", "Filho da Puta!" e outros de menor calão.

As vantagens são evidentes. Ninguém pode dizer que não ouviu o que tu disse. O problema do entendimento se resolve com umas aulinhas de português a mais, para evitar as redundâncias, e com um bom caderno de caligrafia (ainda existe isso?). Para os modernosos, dá para usar as mensagens de celular. Como disvantagem não dá para dizer que não disse/escreveu alguma coisa. Dá para usar em uma audiência pública, por exemplo, para acusar. E também para cobrar políticos de promessas não cumpridas.

Tudo isso para poder mostrar o meu papel na sociedade.